O filhote do Demônio
(Nelson Rodrigues)
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Nelson Rodrigues“O Reacionário”
Neste final de século, o homem está passando por uma
experiência inédita. Não sei se me entendem. O que quero dizer é que,
pela primeira vez, conhecemos uma época idiota. Imagino o digno espanto
de um excelente burguês que, por acaso, esteja lendo estas notas: — “O
que é época idiota? Isso não existe, nunca existiu”. Ora, ora. Porque
nunca existiu é que eu falei em experiência inédita.
Que idade terá o homem? Eu poderia arriscar um número
delirante: 1 bilhão de anos. Mas vamos calcular por baixo: 40 mil anos.
Há 40 mil anos, o homem é homem. Antes, o homem era um sólido
quadrúpede e urrava no bosque. Continuemos: — desde que o homem se
tornou um ser histórico, a população da Terra assim se dividiu: — de um
lado, uns dez sujeitos, que podemos chamar de “superiores”, de outro
lado, milhares de outros sujeitos, que podemos chamar de “idiotas”.
O equilíbrio do mundo ia depender da submissão dos idiotas
aos superiores. E, para a nossa felicidade, foi exatamente o que
aconteceu. Só os “superiores” pensavam, sentiam, agiam. Só eles tinham
vida política. Perguntará o leitor, num desolado escândalo: — “E os
idiotas não faziam nada?”. Faziam os filhos, o que era, como se vê, um
papel nobilíssimo, que iria assegurar a continuidade da espécie.
E assim o mundo pôde ser organizado superiormente. Jamais
os idiotas tentaram contestar os “melhores”. Vocês percebem? O idiota
era o primeiro a saber-se idiota e como tal se comportava. Até que, de
repente, o idiota transborda dos seus estreitos limites. Qualquer débil
mental (de babar na gravata) discute Cristo, nega Cristo; um radioator
dizia-me: — “Não acredito na natureza, acredito na ciência”. Outro dia,
num sarau de grã-finos, um deles fazia um comício: — “Precisamos acabar
com a arte!”. Alguém pergunta: — “E os artistas?”. Respondeu: —
“Precisamos acabar com os artistas!”
Por toda parte sentimos que são os idiotas que mandam, que
influem, que decidem. Isso aqui e em qualquer outro país, ou idioma.
Mas não vou esgotar aqui um tema, que exigiria um ensaio de oitocentas
páginas (daí para mais). O que importa notar é que estão acontecendo
coisas no mundo, que são possíveis porque vivemos na mais idiota das
épocas.
Por exemplo: — há um tipo mais nítido, translúcido,
perfeito de idiota do que a sra. Betty Friedan? Aliás, digo “idiota”
sem intenção restritiva, com a mais singela e imaculada objetividade. A
sra. Friedan esteve por aqui. Mereceu a cobertura da nossa imprensa,
assim como merece cobertura da imprensa mundial. E que disse ela? Disse
coisas assim: — “Mãe é uma definição sexual”. Esposa, outra definição
sexual; noiva, namorada, amante, mais outras definições estritamente
sexuais. Para a santa e horrenda senhora, não há a menor diferença
entre a mãe de cada um e qualquer cachorra prenha. Nunca lhe passou
pela mente a idéia de que pudesse existir na relação entre homem e
mulher qualquer coisa parecida com amor.
Vejam vocês. A mulher que odeia não um homem determinado,
mas todos os homens, já deixa de ser mulher. Convém olhar com a maior
suspeita a sua feminilidade. E outra coisa: — libertar o que e de quem?
O pior é que o Movimento de
Libertação Feminina bate muito na tecla da liberdade sexual. Imagino o
pânico do leitor: — “Mas elas já não a têm?”. Outro dia, fui convidado
para jantar numa casa de tradicional família. No meio da conversa, o
dono da casa fez a seguinte revelação: — encontrara pílulas na bolsa da
filha de treze anos (por sinal, filha única). Houve um sussurro
deliciado na mesa. E, então, os presentes concordaram em que a atual
geração é melhor do que todas as anteriores, desde o Paraíso. A mãe da
garota, radiante, disse: — “Eu aprendo com a minha filha. A minha filha
me ensina coisas que nem eu nem meu marido sabíamos”.
A propósito, ainda, da liberdade sexual, eu gostaria de
lembrar a entrevista que d. Hélder concedeu, anos atrás. Como se sabe,
d. Hélder é sempre um ator atrás da platéia. E a TV deu-lhe uma
audiência de 600 mil pessoas. A folhas tantas da entrevista, o locutor
faz a sua voz mais melíflua, mais açucarada: “D. Hélder, tem aqui um
telespectador pedindo a sua opinião sobre o amor livre”. Suspense.
Oitocentos mil espectadores se entreolham. Que diria aquele sábio que
também era um santo? (Eu disse santo. Mas alguns espíritos
estreitamente positivos acham o Arcebispo Vermelho um filhote do
Demônio.)
Eis o que respondeu d. Hélder Câmara, naquela noite
inesquecível. Dando pulinhos, disse: — “Pra que falar de amor livre, se
o Nordeste passa fome?”. Houve um tumulto entre os telespectadores, que
não sei se foi de deslumbramento ou de frustração. Pois bem. Desta vez,
a habilidade do Arcebispo Vermelho saiu-lhe pela culatra. Falava-se de
fome. Ele podia ter dito: — “O Amor Livre é a fome do amor”.
Deixemos o filhote do Demônio. Vejamos: — “O Amor Livre é
a fome do amor”. Parece um vago e suspeito jogo de palavras. Vamos
devagar. Se me permitem a ênfase, direi que qualquer mulher nasceu para
um só homem, qualquer homem nasceu para uma só mulher. Quando, por sua
desventura, o homem e a mulher separaram o Sexo do Amor, começou o
martírio de ambos. A vida sexual abundante, e sem amor, é, sim, a fome
do amor.
Os idiotas entendem, por amor livre, experiências sexuais
sucessivas e intermináveis. “E a liberdade?” perguntarão vocês. Bem: — nada frustra
mais a mulher do que a liberdade que ela não pediu, que não quer e que
não a realiza.
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