Sangue como Groselha
(Nelson Rodrigues)
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Nelson Rodrigues“A cabra vadia”
Foi na paróquia de Navalmorales. Seguraram o padre: —
“Estás preso, velhinho”. O ancião suspira: — “Seja o que Deus quiser”.
Outro miliciano (eram milicianos) pergunta: — “Estás com medo, padre?”.
Responde: — “Quero sofrer pelo Cristo”. Os milicianos riam, sem nenhuma
maldade. Batiam nas costas do sacerdote: — “Pois morrerás como Cristo”.
Em seguida, disseram: — “Tira a roupa, amigo. Ou tens vergonha?”. —
Olha as caras que o cercam: — “Tudo?”. E os outros: — “Tudo”.
O padre vai-se despindo. E, de repente, pára. Pergunta,
súplice: — “Basta?”. O chefe diz, e não isento de doçura: “Eu disse
tudo”. E tirou tudo. Alguém faz o comentário: — “Como tu és magro, hem,
velho?”. De fato, o ancião era um esqueleto com um leve, diáfano
revestimento de pele. Foi açoitado furiosamente. Perguntaram: — “Não
choras, padre?”. Arquejou: — “Estou chorando”. As lágrimas caíam-lhe,
de quatro em quatro.
Por fim, os homens cansaram-se de bater. Resmungavam: — “O
velho não grita, não geme”. Houve um momento em que um dos milicianos
teve uma dúvida: — “Padre, vamos fazer um trato. Blasfemas e serás
perdoado”. Responde: — “Sou eu quem os perdoa e abençoa!”. E repetiu: —
“Quero sofrer como o Cristo”. Os milicianos se juntam, num canto, e
discutem. Como matar o padre, eis a questão. Um deles voltou: — “Padre,
vamos te crucificar”. Estende as duas mãos crispadas: — “Obrigado,
obrigado”.
Mas três ou quatro milicianos esbravejavam: — “Vamos
acabar com isso!”. Realmente, fazer uma cruz dava trabalho. A maioria
optou pelo fuzilamento: — “Fuzila-se e pronto!”. Puxaram o padre nu: —
“Vamos te fuzilar. Anda” . o velho tinha um último pedido: — “Quero ser
fuzilado de frente para vocês. Pelo amor de Deus. De frente para
vocês”. E repetia: — “Quero morrer abençoando vocês”. Atracou-se a um
miliciano, escorregou ao longo de seu corpo, abraçou-se às suas pernas;
soluçava: — “De frente para vocês, de frente, de frente, de frente!”.
Levou seus últimos cachações terrenos: — “Sai pra lá, velho!”.
Ficou de frente. Quando viu os fuzis apontados,
esganiçou-se: — “Eu perdôo vocês! Eu abençôo vocês! Eu amo vocês, amo,
amo, amo”. Os milicianos atiraram. Um tiro na cara, outro no peito,
outro no ventre, outro não sei onde. E ficou, lá, horas, varado de
balas, aquele cadáver tão magro e tão nu.
Aí está um episódio da Guerra Civil Espanhola. Iguais a
esse, e piores do que esse, ainda mais hediondos, houve milhares, houve
milhões. De parte a parte acontecia tudo. Matava-se, violava-se,
enforcava-se, sangrava-se sem nenhum ódio e, até, sem nenhuma
irritação. O padre de Navalmorales teria escapado se tivesse dito um
palavrão contra Deus ou contra a Virgem Maria. E sairia com vida e
ninguém lhe tocaria num fio de cabelo.
Contei o episódio do sacerdote e proponho ao leitor: —
façamos de conta que isso vai acontecer no Brasil dos nossos dias. Não
é mais a Guerra Civil Espanhola, nem Espanha, nem Navalmorales. É a
Guerra Civil Brasileira. A toda hora e em, toda parte, brasileiros
fazem apelos à Guerra Civil. Há muita gente interessada em que os
brasileiros bebam o sangue uns dos outros. E vamos admitir que, tão
solicitada, tão sonhada, a Guerra Civil venha a explodir no Brasil.
Sei que estou, aqui, sugerindo uma fantasia cruel. Mas
vamos lá. Tiremos de cena os milicianos. Somos agora nós, brasileiros,
cariocas, paulistas, gaúchos, pernambucanos ou lá o que seja, quem
prende um padre bem velhinho como o de Navalmorales. Vejo um nosso
patrício rosnando: — “Velho, fica nu, velho!”. Algum leitor há de
pedir: “Licença para um aparte?”. Respondo: — “Pois não”. E o leitor,
enfático: — “Mas nós somos brasileiros!”.
. Quando um povo
chega à Guerra Civil ninguém é mais brasileiro, ninguém é mais francês,
ninguém é mais americano ou cubano. Cada qual é o anti-homem, a
antipessoa, o anticristo, o antitudo.O padre velhinho, de oitenta anos
ou mais, está nu. A dez passos, ou quinze, estamos nós, de fuzil
apontado. Vejam bem: — nós — brasileiros, torcedores do Flamengo, do
Fluminense, do Botafogo, do Vasco massacrando um velhinho, magro, santo
e nu. Queremos sangue.
O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não
provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro. Sim, ninguém sonha
com as fúrias que estão por baixo das trevas, A partir do momento em
que se instala o terrorismo no Brasil, tudo o mais é possível. E nós,
brasileiros, estamos brincando com a nossa irracionalidade. Ainda
domingo li um espantoso editorial sobre o assassinato do oficial
americano. Lá está dito que foi obra da direita. Meu Deus, deixamos de
raciocinar. As esquerdas levam anos promovendo, aos urros, o seu ódio
aos Estados Unidos. E vem um jornal e diz que foi a direita a
assassina. Ninguém entende mais nada e nem há nada para entender.
Mas não vou acabar sem referir um outro episódio da Guerra
Civil Espanhola. Prenderam uma freira que, por infelicidade, era
mocinha. Se tivesse 85 anos, seria apenas fuzilada. Mas, repito, era
mocinha. Um miliciano pergunta-lhe: — “Queres casar comigo?”. Não quis.
E, então, ele tomou-lhe o rosário e enfiou-lhe no ouvido as contas do
rosário. Em seguida, bateu-lhe na orelha com a mão aberta, até
rebentar-lhe os tímpanos. Ato contínuo, fez o mesmo na outra orelha. E,
por fim, a violou. Transfiram o mesmo fato para o Brasil dos nossos
dias. As nossas classes dominantes estão encantadas com a letra de
Vandré. Há grã-finas que a cantam, deliciadas, como se cada qual fosse
a própria “Passionaria”. É uma pose, claro, mas uma pose pode
comprometer ao infinito. Em caso de Guerra Civil, prendem a capa de Manchete.
Um sujeito pergunta: — “Queres casar comigo?”. Não. O revolucionário
faz o seguinte: — enfia-lhe pedrinhas no ouvido. Depois dá murros na
orelha. Os tímpanos explodem. Faz o mesmo na outra orelha. E depois,
depois. Paro aqui.
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