Opiário (análise)
(Álvaro De Campos)
Poema que pertence, sendo mesmo o seu expoente máximo, à primeira fase da evolução deste heterónimo de Fernando pessoa, este é sem dúvida um texto decadente, dedicado a Mário de Sá Carneiro. Tal facto é comprovado, aliás, pelo ambiente de uma certa morbidez de alguém que se encontra saturado da civilização, de uma embriaguez do ópio e dos sonhos de um Oriente impossível, de um horror à vida, de um vocabulário que oscila por vezes entre o precioso e o vulgar; e ainda pelo ritmo dos decassílabos agrupados em quadras.
Globalmente, este poema representa ao mesmo tempo a pretensão de Pessoa em experimentar um mundo de sensações novas, de sangrentas «visões de cadafalso», um desejo de «ser coisas fortes». O decadentismo de Sá-Carneiro é bem visível: as imagens, metáforas e símbolos são bem o exemplo dessa atmosfera poética.
Formalmente, o poema é todo em quadras de decassílabos rimados por vezes irregulares, facto que se deverá ao facto de Campos, ora utilizar a forma clássica, ora usar do versilivrismo que é típico das suas composições pertencentes à fase da febre futurista.
Nesta sua fase decadentista, Campos parece cansado de viver: “ É antes do ópio que a minh’alma é doente”/ “ Esta vida de bordo há-de matar-me. / “São dias só de febre na cabeça”. Esta atitude típica do próprio Pessoa faz com que ele (o heterónimo) se entregue aos estupefacientes, como forma de tudo esquecer, de se evadir da monotonia dos dias. Trata-se, no fundo, de uma entrega total ao mundo das sensações. Creio mesmo que podemos descortinar nesta atitude um leve esboço do que preconizava Walt Whitman com o seu «Carpe diem», se bem que este muito mais passivo e forçado, digamos assim. Na realidade, esta consagração às sensações é uma espécie de escapatória, a escapatória possível ao marasmo que é a sua vivência:
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do oriente
Álvaro de Campos é um indivíduo que passa por estádios de depressão e por momentos de fúria, para depois cair na frustração e desejar a morte. O Oriente de que nos fala neste último verso representa aquilo que ele procura, ou seja, o famigerado fascínio oriental aliado ainda ao facto de esta composição poética ter sido elaborada aquando de uma viagem a tal parte deste mundo.
O decadentismo está bem presente nos versos:
Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
No fundo, é a decadência nacionalista da falta do protagonismo épico de outrora e da incapacidade de o recuperar; estará também aqui um prenúncio de a Mensagem? Estará, sem dúvida. A inadaptação do poeta à vida, àquela vida, é um facto marcante:
Esta vida de bordo há-de matar-me
(...) Já não encontro a mola pra adaptar-me.
A sequência de rimas sempre iguais, visível nos anteriores versos, é bem o espelho do que é a vida para Campos: uma monotonia viciosa donde ele não conseguirá escapar. Ele encontra-se perdido, nada o arranca à sua indolência; só deseja a fé e a calma que o arranque às «sensações confusas», e essa fé e calma tenta ele encontrá-las no ópio. O ópio será aliás o «sossego, o chá e a esteira» que lhe faltam para ser um autêntico «mandarim de condição».
A referência a Deus na parte final do poema só poderá ser entendida como o grito do Ipiranga da parte do poeta: talvez só mesmo Deus, enquanto entidade absoluta, omnisciente e omnipotente poderá acabar com tal suplício. Mas não se sabe ao certo qual o papel daquela entidade religiosa na vida de Campos e do próprio pessoa, por isso, tudo o que seja dito para além daqui será pura especulação.
As metáforas e as imagens estão sempre presentes em Campos, que as usa muitas vezes em poemas de forma algo descuidada: “ a vida a bordo é uma coisa triste”/(...) Ido ao Oriente e visto a Índia e a China”/ “Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.”. De resto, o preciosismo de certas metáforas – “Eu vivo a vincos de ouro a minha vida”- aparecerá associado a um certo lirismo inerente à reacção ao uso do ópio, alternando – esse preciosismo- com uma linguagem mais corrente e vulgar, típica do seu estado de decadente entregue à vida: “Falo com alemães, suecos e ingleses / E a minha mágoa de viver persiste.”
Resumos Relacionados
- Fernando Pessoa, O Poeta Imortal
- Recreio
- A Resposta Do Árabe
- Obra Poética Iv
- Álvaro De Campos
|
|