Cãodómino
(Rafaela Plácido)
Numa bela manhã de nevoeiro, durante o seu passeio higiénico matinal e apesar de morar numa rua pouco recomendável, Lulu, um cãozinho de estirpe, um caniche branquinho, escapuliu-se da dona indo parar junto de um monte de areia existente ali pelas redondezas, onde um rafeiro esgaravatava como se aí procurasse umas quantas raízes de gengibre com que aguçasse os dentes.
Passados poucos instantes do encontro entre os dois, é numa cama improvisada sobre a areia que Lulu tem a sua primeira experiência sexual de natureza homo e, ainda por cima, com um cão absolutamente rafeiro e sem um único galho de árvore genealógica onde pudesse pendurar, sequer, ao menos, um único nome de família.
Não tendo sido a referida experiência muito elucidativa quanto às preferências sexuais de Lulu, serviu-lhe, contudo, de pretexto para querer obter uma desforra sobre o cão que o tinha sodomizado, enquanto a dúvida de poder ser efectivamente um gay se instala na sua cabeça, ao ponto de lhe provocar uma enorme angústia existencial que estava a dar com ele em doido.
Querendo saber que espécie de “homem” é ele, Lulu da Encarnação, resolve fugir de casa e é com Castanho que passa a viver, no vão de uma escada, junto com uma numerosa família de pulgas, sentindo-se, ele que nunca tivera nada de seu e apesar da vizinhança em que também se incluía uma boa meia dúzia de ratos, um verdadeiro cãodómino.
Depois, apesar das saudades permanentes da dona, é com a ajuda de Castanho que enceta uma verdadeira busca socrática pelo seu interior, numa tentativa de ficar a conhecer, de uma vez por todas, se gosta na verdade de mulheres ou se, pelo contrário, é um verdadeiro gay pronto para sair do armário.
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