Resumo de Contos de Eça de Queiroz - Deliciosas Barbáries

Sendo a princípio um cultor entusiástico e mesmo incontinente do romântico e do fantástico, foi apenas de forma gradual que Eça de Queiroz se deixou impressionar pelo realismo de Flaubert. O legado dessa fase é uma pequena safra de exóticas peças de imaginação, transpostas numa linguagem caudalosa, que o seu autor, ao posicionar-se contra elas, qualificaria mais tarde de “prosas bárbaras”.

Embora outro volume, “obra mista de fantasia e de crítica” segundo os editores Lello & Irmão, tenha recebido o título "Prosas Bárbaras", talvez o "Contos" aludido, que ainda conforme os editores compreende todos os escritos deste gênero que o autor nos deixou, seja o livro mais representativo desse rapaz visionário e supersticioso, devotado ao sobrenatural e temente às “leis subtis das coisas” e ao “mistério complicado dos Fados”. "Contos" apresenta narrativas pitorescas que conjugam o diáfano e o tétrico, o anedótico e o trágico.

Em "A Aia", sente-se uma peculiar hibridez entre a fábula exemplar e a nostalgia heróica dos românticos, e as figuras arquetípicas do cavaleiro, da princesa e do vilão são ofuscadas pela da nomeada no título. Castelo e arca, espada e corvo, encontramos também, embora de forma decadente, em "O Tesouro", em cuja atmosfera de cinismo alegórico se desenrola a comédia dos três irmãos desonestos, dentre os quais o nome do mais velho, mais estúpido e mais truculento, é, por si só, digno de menção, como um feito memorável de nomenclatura: Rostabal. Os corvos do repasto, os únicos vencedores no final, estavam lá desde o início.

"Adão e Eva no Paraíso", uma evocação parodisíaca do Gênese bíblico - com perspectiva darwiniana -, parece em alguns momentos prenunciar os capítulos proverbiais da primeira parte de "2001, uma odisséia no espaço", escrito quase um século mais tarde pelo autor de ficção científica Arthur C. Clarke, e transposta para o cinema por Stanley Kubrick. Em "No Moinho", a história de uma mulher que troca um sacrifício pelo oposto, a abnegação da virtude pela imolação no vício. Aí a veia realista se entrevê; os melindres da conduta, os meandros da psique, a transitoriedade da ventura, a degeneração moral, crueza positivista e final patético. Já "A Perfeição" concentra-se na mais delicada provação do sutil Ulisses, seu longo cativeiro amoroso na ilha da Ogígia, sob os cuidados - e a vigilância - da deusa Calipso.

Da distensão de "Civilização" resultaria o seu último romance, "A Cidade e as Serras", publicado postumamente. Ali exercitaria uma prosa menos cáustica, mesmo idílica em alguns pontos, simpática a alguns personagens e cenários, em especial as entranhas serranas, sinal de que no auge de sua maturidade o escritor que renunciou à apoteose do sentimento em nome da anatomia do caráter pode ter reconhecido alguma graça naquelas que na verdade foram suas prosas imberbes: “Saberás, porventura com satisfação, que estou seguindo o teu antigo conselho: Enevoei-me outra vez, totalmente, no fantástico".

As doze narrativas de "Contos" são hoje em dia obras imerecidamente raras e desconhecidas do público, cujo encanto reside justamente na inocência de sua malícia, na ingenuidade de suas exclamações, na verve de suas imagens, na indocilidade envolvente de sua linguagem, na candura de sua ironia, na insubordinação emotiva dos temas e dos motivos, no descontrole, na espontaneidade, na irrazão que tantos escritores desejam e não ousam por temor aos seus pares e à posteridade, no sabor da assimetria, na volúpia, no descaso que será impossível encontrar na prosa regrada do realismo, na insinuação de caos espargindo por toda parte um aroma de liberdade. Na sorte, na felicidade do iniciante.

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