Alguma poesia
(Carlos Drummond de Andrade)
Também já fui brasileiro
Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.
Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.
Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.
Já não está aí em germe aquela “destruição ritual do Eu e do mundo” que apenas a arte pode compensar, à maneira de tábua de salvação do eu-lírico que, neste caso, se confunde com o poeta? O aparente bom humor modernista, reiterado no uso de expressões coloquiais que dão leveza ao discurso, não consegue escamotear a amargura desse poema em que o “grotesco”[11], não o irônico, se evidencia na atitude de um Eu que progressivamente se desidentifica consigo mesmo e se desidentifica com o mundo em que se reconhecia, restando apenas um ser que se define por negação “Hoje não deslizo mais não/, não sou irônico mais não/, não tenho ritmo mais não.” Isso que escapa a Antonio Candido em Alguma poesia não nega o principal de sua tese e desfaz a possibilidade de tomarmos “Poesia” apenas como uma modulação drummondiana de um tema romântico-metafísico em que Drummond afirmaria, sem nuançá-la, a concepção da poesia enquanto atitude existencial, enquanto vida, anterior ao trabalho artístico. Não nego que Drummond entenda o estado poético como algo que confina com o êxtase — embora para o grande agnóstico que foi, certamente haveria que se tratar de um êxtase laico, talvez mais próximo das iluminações profanas que Benjamin identifica nos surrealistas. Mas afirmo que o poeta tem profunda consciência da especificidade do fazer poético, o que não nos permite pensar que pudesse lhe escapar a duplicidade de perspectivas com que seu poema poderia ser lido.
O equívoco de Candido talvez venha de o crítico tomar a dicção modernista de primeira hora, bastante evidente nos primeiros livros de Drummond, como um sinal da atitude “registradora” do poeta, em que predomina uma atenção descritiva, contraposta à tendência reflexivo-dramática dos livros posteriores. No entanto, o olhar fotográfico de Drummond, muito distante da câmera de Cendrars e mesmo da de Oswald[12], junta, à curiosidade quase isenta de viajante estrangeiro do primeiro e à visada causticamente crítica do segundo, tinturas de melancolia (“Meus olhos têm melancolias,/ minha boca tem rugas./ Velha cidade! As árvores tão repetidas.”), de desconfiança (“Meus olhos brasileiros sonhando exotismos”(...) “Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa”), de tédio e enfatuação (“Eta vida besta, meu Deus!”). Nas tomadas que faz do Eu e do mundo, esses sentimentos diluentes instalam o princípio da corrosão, que lhe atravessa toda a obra e o qual o crítico Luiz Costa Lima bem soube flagrar[13].
Sob a aparente serenidade quase mística de “Poesia” há um riso pronto a explodir, interrompendo o hierático da cena em que o poeta afirma a poesia como estado de alma. Sob a aparente piada, um silêncio que nos leva, aquém ou além das palavras, à meditação quase extática.
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