Conflitos Gerados entre o Ser e o Ter, em São Bernardo
(Márcia Elizabeti Machado de Lima e Renata Maria de Sousa)
Conflitos Gerados entre o Ser e o Ter, em São Bernardo
Deformado e multilado pelo egoismo brutal, o personagem Paulo Honório, em São Bernardo, de Graciliano Ramos, conforme já havíamos discutido em textos anteriores, não compreende e não se integra com Madalena porque para ela o que interessa são os princípios éticos, recusa o compromisso com a inautencidade de ser humana.
Pois bem, o jogo novamente se instaura entre as forças capitalistas x forças humanistas e Madalena insiste na construção da escola, Paulo Honório rejeita, constantemente, a idéia, até que passa a ver nos alicerces da escola, assim como nos da capela, um prodígio capital.
O desencontro entre o ser e o ter é fatal, e sobre isso o próprio pseu-autor relata: “(...)Conheci Madalena era boa em demasia, mas não a conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente.(...)” (p.94).
Todas as ações de Madalena acabam por sufocar o marido em demasia, ele vê nos empregadoas apenas a força de trabalho, o que produz. Ora para um homem que afirma ter conseguido tudo de sol a sol , dar algo a alguém não lhe parece nada convencional.
Fundamentando a obra de Graciliano, temos Lenin, em O que é Marxismo que pode nos direcionar à origem do sentimento exacerbado de posse instaurados no personagem de Paulo Honório: “(...) A sociedade burguesa moderna se ergue sobre as ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Apenas substituiram às de outrora, novas classes, novas condições de opressão, novas lutas. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos inimigos, em duas grandes classes: a burguesia e o proletariado.(1990:27).”
Isso explica que em qualquer sociedade, as aspirações de parte de seus membros opõem-se às dos outros, qua a vida social è plena de contradições, que a história nos revela a luta entre os povos na sociedade. Já o primeiro choque entre os personagens, “oito dias depois do casamento”, se dá em torno das questões financeiras. Madalena acha pequeno o ordenado de seu Ribeiro, Paulo Honório se irrita e sai da mesa. O segundo confonto, o espancamento de Marciano, tem como origem o dinheiro: são seis contos de réis gastos em material de ensino, por insistência de Madalena, que deixa o marido irritado e o leva a maltratar o empregado.
Cada uma dessas brutalidades horroriza Madalena, que não pode aceitá-las. Para Paulo Honório é inaceitável que ela não compreenda seu comportamento, pois afinal, construir uma propriedade como São Bernardo implica em certos atos necessários. Como Madalena se recusa a alienar-se, os choques são inevitavéis. A ação da narrativa se concentrará, agora, em torno desse novo obstáculo que Paulo Honório terá de enfrentar, a tentativa de reduzir Madalena a objeto possuído. Porque na medida em que a mulher escapa ao seu controle, na medida em que ela é capaz de apiedar-se dos trabalhadores miseráveis que vivem na fazenda, afasta-se cada vez mais do universo de Paulo Honório, e ele sente ciúmes.
Na evolução da narrativa, logo adiante temos um narrador-personagem tecendo suposições sobre sua existência, momento em que começa a perceber o real conflito entre ele e a esposa: “(...)Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins e a desconfiança terrível que me aponta inimigos por toda a parte. Foi este modo de vida que me inultilizou.” (p.164)
Para Coutinho, esse é o momento crítico em que faz o levantamento existencial de uma vida até então dedicada ao mando ostensivo na construção da fazenda São Bernardo . “Esse é um olhar de interjeição crítica que o personagem de Graciliano faz, um reconhecimento de sua própria pessoa, uma definição de si próprio como ser no mundo.” (2004:398). Com o desnudamento da consiência e a penetração no real significado de sua vida, ele faz uma espécie de reconhecimento de suas ações, descobre o mais trágico após a morte da mullher. Como ser humano limitara-se a seguir somente à ambição de poder que acaba por consumi-lo e o ter acaba definindo sua visão de mundo. A solução do conflito, o desfecho da narrativa é o suicídio de Madalena, pois ela e Paulo Honório não conseguem se realizar humanamente.
Diante das reflexões do personagem, é válido destacar o que afirma Coutinho: “Embora Paulo Honório seja inteiramente diverso de Graciliano naão foi deformado nem caricaturado. Contém no particular, no individual, toda problemática comum aos seres humanos.”(2004:399)
É o homem dominado pelas forças produtivas do modo de produção capitalista que dissolve-se no anonimato, reduz-se ao nada. É desse nada que emerge Paulo Honório, com a força do proprietário todo-poderoso, tentando imprimir, a todo custo, sua passagem no contexto em que vive.
Concluindo, Madalena poderia ter representado para Paulo Honório o lugar da resistência, da busca de valores autênticos, num mundo dominado pela lógica imperativa do capitalismo econômico, onde as relações verdadeiras amesquinham-se e a falência das utopias é decretada. O homem reificado, cujos gestos, intenções e atitudes foram banalizados pelas repetições ritualísticas da prática cotidiana, poderia encontrar, no amor de Madalena, os sinais vitais da condição humana. Infelizmente, a avidez e o sentimento de posse exacerbado de Paulo Honório ofereceram terreno fértil ao ciúme destruidor e o papel de redenção que Madalena poderia ter exercido na sua vida ficou perdido no infinito do mundo do “ter”.
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