Folha de Sao Paolo
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O sono dos professores de ética de Frei Betto.
É inegável a enorme capacidade de perdoar de nossos parlamentares.
O perdão assim tão prodigamente distribuído, acabou por transformar o parlamento numa “casa onde tudo se tolera. E uma casa assim, tem um nome”, nas palavras de quem de fato a conhece, o senador Cristovam Buarque.
É nesse ambiente moralmente edificante que Frei Betto em artigo na Folha de São Paulo, 27/05/2009 propõe que alguns cidadãos acima de qualquer suspeita ministrem um curso de ética.
Esses professores seriam pessoas de parcos recursos financeiros e que precisariam trabalhar durante meses ou anos para economizar os valores que acharam em locais públicos e que prontamente procuraram devolver.
Mas seria esse comportamento de fato inquestionável, como parece acreditar Frei Betto?
Honestamente não nos passaria pelos recônditos labirintos da alma, inclusive a dos próprios personagens – benfeitores e beneficiados pela devolução - o pensamento de que não passariam de simples otários, uns pobres trouxas?
O frei nos conta que um dos benfeitores dizia não poder dormir enquanto não devolvesse o achado.
Mas o mundo dá voltas, e é de se supor quantas outras noites ele provavelmente não dormirá dominado pelo sentimento de ser uma verdadeira besta...
Na verdade, no caso surgem três questões relevantes:
A primeira é a comparação inadequada entre o furto de uns e a sorte de outros.
Suponhamos que, aproveitando um desses raríssimos gracejos da sorte, as pessoas não tivessem devolvido o dinheiro. Isso seria comparável à imoral malversação do dinheiro público, à distribuição de favores em proveito próprio, à descarada deturpação do espírito das leis e semelhante ao assalto continuado ao erário ?
Na verdade trata-se de comparação inadequada entre fatos de natureza inteiramente diversa.
A segunda questão relevante é a do porquê existiria um comportamento lesivo aos próprios interesses dos benfeitores, contrariando um princípio básico de sobrevivência que é proteger-se a si mesmo, defendendo os interesses imediatos.
A terceira questão é o motivo de atitudes semelhantes de altruísmo, aparentemente aberrantes e desatinadas, merecerem tamanha admiração, louvação e apreço, em, ao que se saiba, todos os tempos e lugares.
Algumas pessoas bastante excepcionais são dotados de uma predisposição natural ao altruísmo, da mesma forma que uns poucos são possuidores de habilidades físicas ou intelectuais muito superiores á média da população. A curto prazo, a educação pode fazer pouco no sentido de criar essa capacidade. O próprio Frei Betto mostra que, se a educação bastasse, "os colégios religiosos onde estudaram Collor e Maluf seriam fábricas de anjos" (Correio de Araxá, 30/05/2009)
Sabe-se que mesmo entre os animais, existem ocasiões em que alguns, para a proteção do bando, se sacrificam, colocando-se em situação de perigo iminente.
No caso humano, quando a razão, substituiu ou se misturou aos impulsos instintivos surgiu um mecanismo psicológico que, mesmo se sobrepondo ao instinto, produziu efeitos semelhantes.
Apareceu assim a idéia do sacrifício, desde os mais cruéis e sanguinolentos até a sua total sublimação nos delicados e sutis mecanismos de coerção que permeiam a vida na sociedade moderna.
O sacrifício inicialmente imposto, como no sacrifício de Abraão, evoluiu para o sacrifício autoimposto, surgindo a figura do herói, presente nas lendas e mitologias ao redor do mundo.
Embora para a grande maioria de nós, os atos de heroísmo devam ser praticados por outros, Sempre se tem louvado o adiamento, a redução ou perda do ganho pessoal, e no limite. o risco ou perda da vida por algo além dela própria.
A nossa cultura se fundamenta no Grande Sacrifício, seguido pelo sacrifício de milhares de mártires, torturados, queimados, crucificados, degolados ou trucidados pelas feras, tudo por serem fiéis a uma idéia ou crença, abandonando seus interesses imediatos, inclusive o mais elementar, o de viver.
O impacto cultural de tudo isso é tamanho que talvez revele em parte a origem da ânsia por um certo “sentido” ou “motivo” para a vida, ou seja, algo que, além dela, a “justifique”, ou algo pelo que a vida pudesse ser sacrificada, como se a vida, qualquer vida, necessitasse disso.
Por isso os professores de ética, poderão dormir o sono dos justos, certos de que contribuíram para que o mundo seja um lugar um pouco melhor de se viver.
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