Pink E O CÉREBRO
(Cassiano Ribeiro Santos)
Nos últimos anos, consolidou-se uma poderosa corrente científica que pretende explicar toda a nossa vida subjetiva através da neurociência e da fisiologia do seu precípuo objeto: o cérebro. Biologia, física e química são as rejuvenescidas fadas-madrinha dessa infante “weltanschaaung” que busca explicar a consciência que temos de nós e do mundo como resultados de uma atividade cerebral a formatar, organizar, construir e transformar os dados dos sentidos. Estes dados seriam a tradução de uma “entourrage” feita de fluxos, partículas, ondas e forças de alucinadas lentidões e velocidades hipostasiadas: uma caosmose, para usarmos a definição da física atual. A imagem regular e pastoral do mundo cotidiano seria, assim, efeito dos processos bioquímicos e neurolépticos do nosso cérebro, separando as cores, harmonizando os sons, domesticando os sabores e espiritualizando os aromas. Nossa vida interior também não passaria de uma grande fuzarca, não fosse a coordenação de misteriosos glios, corpos calosos e bulbos neurais: lembranças, emoções, pensamentos e atitudes... a girândola da vida a brotar dessa providencial fisiologia encefálica. Não há mais, no deserto epistêmico do século vinte e um, rastros de mitologias, linguagens, pulsões ou outros sinais do romântico conceito de inconsciente. Os neurotransmissores, as acetilcolinas, as sinapses, os micro-tubos quânticos, as locações genéticas... novas estrelas hoje brilham após o crepúsculo do inconsciente, deste “eu profundo de origem divina” como F. Pessoa chamava a alma humana! Alguém precisa entrar no gorduroso palácio da psiquiatria e da neurociência, apontar para o cérebro e gritar: “o rei está nu!”, “o rei está nu!” Afinal, a tese de ser o cérebro o grande regente da vida consciente não resiste à duas ou três questões bem colocadas: sendo ele do mesmo estofo com que os corpos são feitos, de matéria (orgânica), moléculas, átomos, partículas – e o que mais os físicos descobrirem – (e supondo ser a natureza um rebut de energias não representadas sequer pelas mais disparatadas equações matemáticas), onde o cérebro encontraria as formalidades com as quais ele individua e organiza a experiência sensorial? (E a si mesmo?). Onde estariam as cores, os sons, os aromas, as dores, as recordações, o amor, se a matéria não pode, onticamente, os conter? De outro modo, onde estariam as formas, os números e as idéias se elas não fossem propriedades imanentes à própria natureza sensorial? Não sem razão, sabemos que todas estas sofisticadas ciências, seus métodos, sua epistême (e suas filosofias serviçais, como a fenomenologia e a gestalt) são amplitudes e platitudes do filósofo Immanuel Kant que apontava como origem da ordem do mundo um princípio transcendental – para além, portanto, do cérebro e na fronteira mais interna da mente – chamado de “princípio de apercepção transcendental”. Seja lá o que for isso, sentimos uma inspiração, um perfume platônico nessa doutrina de ser as formas da percepção, ainda que habitando a matéria, verdadeiros alliens saídos de um segundo mundo ou mundo das idéias para usar uma terminologia hegeliana. Por outro lado, se considerarmos que o cérebro só pode reconhecer o que lhe é naturalmente semelhante, isto é, se a natureza já for pré-formatada, com estas formas habitando o coração da matéria, (Matéria Signata quantitati como Tomás de Aquino a definia); então, teríamos que supor que o cérebro apenas mima e opera com signos que já lhes chegam empacotados, vindos de uma natureza orgânica e harmoniosa (o caos quântico, nesse caso, seria apenas um abstração como as formas conceituais com que hora estamos especulando). O cérebro talvez seja como um fecho éclair unindo duas dimensões: de um lado, que chamaríamos de realismo platônico, o reino das formas, idéias e essências que, participando da nossa mente (em segundo grau) e da natureza (em terceiro), modulam o caos de impressões e sensações experimentadas; na outra dimensão, batizada de nominalismo aristotélico, pressupõe-se que as formas existam encarnadas no real (em cada indivíduo) e cuja abstração seria os nomes, os conceitos, as espécies e demais gadgets categoriais com os quais o cérebro lê e interpreta a natureza. Para qualquer lado que a psiquiatria pender, como os míticos argonautas que caiam no abismo Silas ao fugir dos rochedos Caríbdis, naufragará a stultifera navis dos psiquiatras com seu velo de ouro coruscado de sinapses. Não deixa de ser divertido, contudo, ver suas mirabolantes e acrobáticas tentativas de equilibrar, nos hemisférios cerebrais, as tábuas do conhecimento, como um malabarista que fosse capaz de por um pé no Corcovado, outro, no Pão-de-açúcar e lavar o crânio nas águas geladas da baía da Guanabara.
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