Anticristo
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Anticristo, de Lars Von Trier, apontado pela crítica em geral como filme de terror, em minha visão é um drama psicológico. Certamente o enredo inspira várias outras leituras, pela riqueza do que trata no humano. E esta é a minha leitura. Dado este parâmetro, de drama psicológico, discordo do diretor, de que este seja um filme sobre luto. É um filme sobre melancolia. Por quê? Porque a personagem feminina incorporada pela atriz francesa Charlotte Gainsbourg não consegue fazer o luto do filho que morreu por acidente ao cair de uma janela, enquanto ela fazia sexo com o marido (Willem Dafoe) e pai do menino.
A esposa, uma historiadora, é bem mais nova que o marido, um terapeuta (psicólogo de linha cognitiva-comportamental), o que sugere uma relação edípica (o pai que estabelece regras, normas, ordem e, em especial, castra). Suscetível às opiniões externas, tais como a do esposo em relação ao tema de sua tese, o que a desanimou de finalizar o trabalho, a mulher se culpa exacerbadamente pela morte da criança - um dos ingredientes da melancolia, não do luto. Para ajudá-la a elaborar o que considera luto, ele a leva para uma cabana no meio da floresta, onde o casal fica isolado.
Em um trecho do filme, ela se recorda de algo que não aconteceu (porque nós, espectadores, não vimos): enquanto fazia sexo, viu de viés o filho indo para a janela, em direção à morte - fantasia que aumenta sua culpa, porque pensa que poderia ter evitado. Após a morte, ela é internada e medicada, devido à profunda depressão de que padece. Ordens médicas sugerem que vá para casa - o que me parece um erro, uma vez que em estados de melancolia há risco de suicídio (autodestruição) e até homicídio (destruição do outro pela projeção de si sobre o outro), o que exige manutenção da internação.
O marido concorda e incentiva a saída do hospital, mas esquece-se que um terapeuta não deve tratar familiares e amigos. Equivocadamente engendra uma estratégia terapêutica para ajudá-la a sair do suposto luto. Lista os medos da mulher, para que ela os enfrente (terapia psicológica cognitivo-comportamental, que trata do enquadre comportamental, e não de questões mais profundas, como faz a psicanálise).
Tenta ajudá-la e é acusado por ela de onipotência - aquela mesma que a fez desistir de escrever sobre o tema escolhido para a tese. Interessante que além disso, ela o acusa de arrogante. Inconscientemente, talvez ela saiba que seu medo é angústia - um medo absoluto de separação e abandono do que não tem nome nem nunca terá - isto, para Jacques Lacan; para Sigmund Freud, a angústia tem origem no trauma do nascimento. Talvez por isso, ela impeça os outros (filho e marido, como se verá adiante) de andar. Ela mesma, simbolicamente, não anda.
Percebe-se que a mulher tem dificuldades de "andar" simbolicamente na vida, no mundo, mesmo antes da morte do filho. Em flashback, lembra-se que quando estava na mata, isolada com o filho (para escrever a tese que afinal não foi escrita), ao vesti-lo trocou os sapatos, colocando o esquerdo no pé direito e vice-versa, e neste sofrimento marcado por choro e gritos da criança o deixou o dia inteiro. O marido, ao escutar o relato, a olha com estranhamento. Não sabia o que estava por vir.
Em sua dor melancólica, tenta resolver o desespero por meio do ato (sexual). A tríade de mendigos citada no filme (dor, desespero e luto), no entanto, não se completa. Porque o último mendigo não é luto, e sim alienação melancólica que a impossibilita de "andar" no mundo, na vida. Assim como na troca dos sapatos da criança, em um momento agride o marido, mutilando-o sexualmente e em uma das pernas, o que expõe uma só intenção: acabar com a onipotência dele, como se dissesse: se eu não posso andar, você, como meu espelho, também não pode. Ou: mato no outro o que está morto em mim.
Portanto, embora as mutilações aplicadas ao outro possam ser interpretadas como sadismo, a contraparte é o masoquismo, antes inscrito em seu sofrimento e desespero, e só depois projetado sobre o outro. Ao contrário do luto, a melancolia pode não ter fim e enlouquecer no sentido da impossibilidade de subjetivação, fundamental para a elaboração da perda. O que se perde, então, não pode ser simbolizado, porque está no concreto, no real, sem denominação. O que talvez tenha sido perdido muito antes da morte do filho, e que, sem elaboração, retorna na perda atual e concreta, levando ao surto.
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