Um ANTROPÓLOGO EM MARTE
(Oliver Sacks)
O grande paradoxo da doença é o seu potencial criativo, pois ela acaba revelando outros poderes latentes que talvez nunca se manifestassem em condições normais.
Oliver Sacks observa, com atenção especial, os processos geradores de soluções únicas em resposta às necessidades do organismo, sobretudo no que se refere á constituição de uma identidade ou à singularidade de um EU.
1. Um pintor que ficara daltônico sente-se profundamente perturbado logo após o acidente. A perda da visão e inclusive da memória das cores o afeta não apenas profissionalmente mas em muitos outros aspectos subjetivos, como na apreciação das músicas, dos alimentos, no estado de espírito, oprimido pelas tonalidades cinzas em que sua vida submergiu. Quando recupera o gosto pela pintura e é bem sucedido com suas obras em branco e preto, recusa-se a tentar uma cirurgia para voltar a ver as cores. Todo o seu ser já havia se adaptado às novas condições, tivera que se remodelar/reposicionar diante das coisas e agora, era desta forma que se reconhecia.
2. Um jovem rebelde encontra a paz quando adere a uma corrente do espiritualismo hindu. Vai perdendo sua agressividade, tornando-se dócil. Então começa também a perder a visão e o que começou sendo considerado um sintoma natural do seu processo de iluminação espiritual acabou se revelando ser uma grave seqüela de um tumor cerebral. Perde também a capacidade de adquirir novas memórias, de reter as novas experiências e muito menos, dar-lhes sentido. Nem percebe que está doente. O tumor atingiu partes importantes do cérebro ligadas á identidade pessoal. Era capaz de interagir desde que lhe dessem algum estímulo e podia reconhecer pessoas do seu convívio repetitivo, mas sozinho, permanecia inerte e ausente.
Somente a música, especialmente as de suas bandas preferidas dos anos 60, tirava-lhe deste estado de torpor ausente e o fazia reviver. A música estabelecia uma ponte com os sentimentos perdidos. A unidade orgânica presente nas estruturas métricas da música e da poesia ajuda a recuperar a coesão da sua identidade, parece atuar nas camadas afetivas obscurecidas pela doença e ele se torna momentaneamente são.
3. A síndrome de Tourette é uma doença muito singular: o portador convive com uma compulsão gestual (tiques nervosos, mímica involuntária) e da fala (repetição, imitação, xingamentos, obscenidades) sem, contudo, perder sua lucidez e um razoável auto-controle. É possível, voluntariamente, esquivar-se de cometê-los em situações sociais que requerem formalidades, mas, o mais interessante, é a forma como a doença parece sumir quando o indivíduo está fazendo alguma coisa que seja do seu domínio e exija habilidade. A presença do ritmo, do fluxo, nessas atividades, certamente também contribuem para a concentração. Aliás, o portador da síndrome geralmente desenvolve uma mente observadora e um olhar além da superficialidade. A compulsão que o acomete se manifesta como uma força emergente das profundezas do inconsciente e se torna parte integrante da personalidade. Um caso curioso é o do exímio cirurgião que prefere não tomar remédios que diminuem os sintomas porque, na ausência deles, sente-se menos íntegro.
4. A cegueira talvez seja o melhor exemplo de como construímos nosso mundo e nossa identidade a partir de nossas experiências. Com os recursos e sentidos disponíveis, um cego erige sua identidade e sua relação com o mundo, diferente de um indivíduo em condições normais, mas não menos íntegra. Todos os aspectos de criação de imagens visuais e as percepções resultantes são construídos pelo cérebro na experiência do viver, de tal forma que não é possível a um cego “recuperar” a visão integral, com todos seus atributos (por ex. a noção de distância e profundidade) de um dia para o outro. As dificuldades são enormes, se não intransponíveis; é todo um (re)aprendizado e (re)construção da própria identidade, nem sempre possível em determinadas condições.
5. O caso do artista eidético revela a carga emocional que pode existir por trás dessa faculdade de reter na memória, com precisão, cenas/imagens do passado. Esta faculdade adquire um caráter patológico quando, exacerbada, cria alucinações, perturbações de pensamento e da personalidade. Mas o interessante é que ela pode repercutir de forma positiva quando é dada vazão à expressão artística, tendo sido já nomeada como “arte do exílio” ou identificada como uma “cristalização estética da nostalgia”. Embora possa ser constatada as bases neurais de tais distúrbios, é evidente a marca da subjetividade singular, da história pessoal.
6. Os idiots savants possuem determinados talentos que parecem existir como segmentos isolados dentro do restante de uma mente bastante comprometida, o que levou muitos neurologistas e psicólogos a deduzirem que podem existir vários tipos de inteligências, autônomas entre si. Porém, tal visão, não leva em consideração a criatividade e nem os traços marcadamente pessoais, reveladores de uma subjetividade latente e da presença de um “eu”.
7. O autismo é uma denominação bastante ampla, abrangendo uma vasta gama de sintomas neurológicos ou deficiências mentais, alguns com sério comprometimento da comunicação e da interação social; porém, existem outros casos, cujos portadores conseguem desenvolver uma linguagem satisfatória, um mínimo de habilidades sociais e mesmo algumas conquistas altamente intelectuais. O autismo é muito complexo, não havendo dois casos que sejam iguais. As dificuldades do autismo não significam ausência de sentimentos, de afetos ou de um “mundo” interior. Podem revelar uma outra forma de ser, também completa, uma forma de identidade profundamente diferente, da qual se deve ter “consciência e orgulho”, segundo opinião de um pai de família cujos membros são todos autistas.
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