Codeguino
(NELSON PASCARELLI FILHO)
Mudei-me para uma cidadezinha bucólica, faz pouco tempo, velho sonho de um “jovem-adulto” de meia idade. Eu, minha mãe, livros e mais livros e um cão que há muito tempo não late, apenas concorda com tudo à sua volta. Casa ampla com quintal e pé-direito como nunca dantes eu havia conhecido. Mamãe acordava lá pelas nove horas e, enquanto molhava a bolacha no pingado, dizia-me: - mais um dia, tenho poucos dias a viver, antes da Quaresma o barqueiro me levará para o Altíssimo. Falava-me isto ou quase isto todos os dias com voz rouca de velha, rouquidão que ricocheteava com eco torturante dentro da minha cabeça. Eu sorria, sorriso plácido de filho paciente, brincava com as tétricas palavras maternas: - mamãe quer visitar o cemitério da cidade? – Nesta cidade não tem cemitério, filho. Fiquei perturbado com isso, com a convicção da afirmação materna. À tarde fui ao empório comprar ricota defumada, bem curada e lentilhas. Perguntei ao Haroldo, onde ficava o cemitério. - Aqui não tem cemitério. – E o que fazem com os seus mortos? – Eles são enterrados nos quintais. Aqui todas as casas têm quintais com árvores frutíferas. Entregou-me a ricota e as lentilhas, enxugou o suor da testa com o dorso da mão esquerda e sorriu como se desculpasse por ter me falado o óbvio. Em casa esfarelei a ricota em cima do espaguete e os batizei com abundância de azeite. Não disse nada à mamãe. Silenciosamente pedi a Deus que nunca me faltasse a porção a que estou acostumado. Cortei o pão com as mãos, à maneira dos italianos e fartei-me enquanto mamãe colocava as lentilhas de molho. À beira da mesa estava o nosso cão. Olhei para ele e pensei: antes tu fosses um lobo faminto a me seguir do que um cão mudo a esperar por migalhas. Talvez o cão morresse antes de mamãe. É mais fácil sepultar cães que não latem mais do que velhas mães que resmungam. Olhei para o que sobrou da ricota, ela estava bem defumada e picante. – Limpa a boca, filho! Amanhã almoçaremos lentilhas com codeguino. Lentilhas dão sorte. Disse-me isto, guardou a ricota na geladeira, beijou-me na testa e foi dormir. Sussurrei para o cão: - antes da quaresma o barqueiro virá buscá-la. Limpei a boca na toalha, levantei-me da mesa e abri a porta que dava para o quintal. Estava ali diante de mim uma árvore frutífera e um generoso espaço para sepultar os roucos mortos queridos e cães que concordam com tudo à sua volta. Para Saber Mais: www.pascarellisciensead.com.br
Resumos Relacionados
- Cadê Papai?onde Ele EstÁ?
- Nanocontagem
- Cemitério
- O Matuto
- Experience Is A Good Teacher
|
|