Vigiar E PUNIR
(Michel Foucault)
A ordenação de 1670 regeu, até a Revolução, as formas gerais da prática penal. Eis a hierarquia dos castigos por ela descritos:
A morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento.
As penas físicas tinham, portanto, uma parte considerável. Os costumes, a natureza dos crimes, o status dos condenados as faziam variar ainda mais.
A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte: uns podem ser condenados à forca, outros a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcados em seguida; outros, por crimes mais graves, a ser arrebentados vivos e expirar na roda depois de ter os membros arrebentados; outros a serem arrebentados a até a morte natural, outros a ser estrangulados e em seguida arrebentados, outros a ser queimados vivos, outros a ser queimados depois de estrangulados; outros a ter a língua cortada ou furada e em seguida queimados vivos; outros a ser puxados por quatro cavalos, outros a ter a cabeça cortada, outros enfim a ter a cabeça quebrada.
Esse arsenal de horrores não foi a prática cotidiana da penalidade, os suplícios não constituíam as penas mais freqüentes, haviam também as penas leves, como: satisfação à pessoa ofendida, admoestação, repreensão, prisão temporária, abstenção de um lugar, e enfim penas pecuniárias, multas ou confiscação.
Sem dúvida para os nossos olhos atuais a proporção de veredictos de morte, na penalidade da era clássica, pode parecer considerável : as decisões do Châtelet durante o período de 1755 a 1785 comportaram 9 a 10% de penas capitais - roda, forca ou fogueira; em 260 sentenças, o Parlamento de Flandres pronunciou 39 condenações à morte, de 1721 a 1730. De 1781 a 1790 das 500 sentenças, apenas 26 receberam esta condenação.
Os Tribunais encontravam muitos meios para abrandar os rigores da penalidade regular, seja recusando-se a levar adiante processos quando as infrações eram exageradamente castigadas, seja modificando a qualificação do crime; às vezes o próprio poder real indicava não aplicar estritamente tal ordenação particularmente severa. De qualquer modo, a maior parte das condenações era banimento ou multa: numa jurisprudência como o Châtelket (que só conhecia delitos relativamente graves) o banimento representou, entre 1755 e 1785, mais da metade das penas aplicadas. Grande parte dessas penas não corporais era acompanhada a titulo acessório de penas que comportavam uma dimensão de suplício: exposição, roda, coleira de ferro, açoite, marcação com ferrete; era a regra para todas as condenações às galeras ou ao equivalente para mulheres - a reclusão no hospital; o banimento era muitas vezes precedido pela exposição e pela marcação com ferrete; a multa, às vezes era acompanhada de açoite. Não só nas grandes e solenes execuções, mas também nessa forma anexa é que o suplício manifestava a parte significativa que tinha na penalidade; qualquer pena um pouco mais séria devia incluir alguma coisa do suplício.
O que é Suplício?
Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos. O suplício faz correlacionar o tipo de sofrimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas.
O corpo suplicado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer luz à verdade do crime.
Na França, como na maior parte dos países europeus – com a notável exceção da Inglaterra – todo processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só para o público, mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas. Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégio absoluto da acusação.
O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade do século XVIII: entre os filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados; parlamentares e entre os legisladores das assembléias. É preciso punir de outro modo, eliminar esta confrontação física entre soberano e condenado.Essa necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do coração ou da natureza indignada, no pior dos assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos sua “humanidade”. Chegará o dia no século XIX, em que esse “homem”, descoberto no criminoso, se tornará o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende corrigir e transformar, o domínio de uma série de ciências e de práticas estranhas – “penitenciarias”, “criminológicas”.
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