Território (possível) da escrita feminina
(Nancy Rita Ferreira Vieira)
O texto de Nancy Vieira é fruto de desdobramentos de sua pesquisa para a Dissertação de Mestrado A bela esquecida das Letras Baianas: a obra de Anna Ribeiro (UFBA, 1998). Em “Território (possível) da escrita feminina”, ela também retoma o estudo apresentado no I Encontro Internacional: A Representação da Imagem Feminina, na Universidade Estadual de Londrina, em 2001, com o título “O mito do sacrifício feminino em três leituras”.Nessa retomada de seu pensar sobre a escritora baiana oitocentista Anna Ribeiro Góes Bittencourt, Nancy Vieira ressalta os obstáculos de se tornar escritora no contexto histórico e social de produção em que Anna Ribeiro viveu, bem como as suas indagações acerca da condição feminina em sua época e sua militância no que se pode chamar de “feminismo católico”. Quanto a este último viés, Nancy Vieira assinala que, desde o primeiro romance publicado, Anna Ribeiro se pautou pelo objetivo de criar um romance feminino de formação, através de uma literatura para “formar as consciências” das mulheres de acordo com os preceitos cristãos. Tanto é que ela participava das Ligas católicas em nome da moral e dos bons costumes, sob os ditames da Igreja.Quanto a seu lugar de fala, Anna Ribeiro se insere no contexto de possibilidade de escritura feminina em que o território das mulheres era socialmente tido como o da leitura ou da musa inspiradora. Era uma condição, portanto, a ser driblada para não afrontar diretamente o meio literário masculino dominante, daí a produção de discursos de mulheres para mulheres.No efervescente meio artístico baiano do tempo de Anna Ribeiro, a produção literária estava voltada predominantemente para a poesia e ainda se vivenciava o mito do poeta popular. Em meio a essa escassez de produção de romances, Anna Ribeiro lançou A filha de Jephté, em 1881, com a temática do sacrifício feminino para a continuidade da ordem patriarcal, que recalcava a expressão dos desejos das mulheres. Nancy Vieira nos relembra, entretanto, que foi com O anjo do perdão (1883) que Anna Ribeiro consolidou sua participação nas letras baianas. Nesse romance, acrescenta o caráter histórico à narrativa, ao passo que mantém o aspecto de literatura de mulher para mulheres, mas sem tom piegas ou moralista.Quanto às representações femininas em Anna Ribeiro, em um contexto de transição das relações sociais senhoriais para as do tipo urbano e “civilizadas”, ou seja, das casas-grandes (e pequenas) da zona rural para os sobrados das cidades, era necessário para a mulher aprender os comportamentos dos salões, dos teatros e as consequentes mudanças de hábitos daí geradas. Essa mulher burguesa teve representação importante no romance daquela época. No caso da produção ficcional de Anna Ribeiro, o foco é o sujeito feminino na construção de estratégias discursivas de inserção a partir da encenação do espaço doméstico, com a emergência da voz feminina para além da leitura ociosa dos romances escritos pelos homens. Desse modo, a mulher penetra o contexto editorial oitocentista por expressar a sua realidade cotidiana em um “apoderamento” da palavra narrativa.Nancy Vieira também faz um cotejo entre os romances escritos por homens e aqueles escritos por mulheres em termos de suas representações específicas. No caso de Anna Ribeiro, há o testemunho da influência do médico na vida familiar brasileira, particularmente na realidade das mulheres baianas, em que aos poucos substitui o padre confessor. Muito relevante é a constatação de que o corpo feminino, símbolo pecaminoso na moralidade medieval católica, passa a ser um lugar de poder que sai dos domínios da Igreja e passa a ser controlado pela Ciência Médica no final do século XIX e início do século XX. Esse contexto pode ser encontrado em O anjo do perdão. São também citados e brevemente analisados mais três romances de Anna Ribeiro - Helen, Dulce e Alina e Suzana –, nos quais o enclausuramento feminino e as enfermidades daí advindas são a tônica central. E não se pode deixar de anotar que os títulos são todos nomes de mulheres. Portanto, nessa busca identitária sobre o que significava ser mulher naquela época, Anna Ribeiro enfrenta o falocentrismo ocidental, que ofereceu ao homem todas as prerrogativas identitárias, ao passo que para a mulher foi dado o papel do seu outro, isto é, sua alteridade, em uma relação de dependência. Nesse aspecto, é interessante observar como Nancy Vieira nos informa que, em sua missão formadora, Anna Ribeiro criticava acidamente os romances escritos por homens do Romantismo, acusando-os de desvirtuar as moças da época. São indicados como má leitura principalmente Eça de Queiroz, com o Primo Basílio, Gustave Flauber, com Madame Bovary e José de Alencar, na maior parte de sua ficção.Após algumas considerações sobre a representação da loucura feminina nos romances de Anna Ribeiro, a autora desse texto fecha sua apresentação dessa autora baiana oitocentista reafirmando que as personagens por ela analisadas são vitimadas por um meio social falocêntrico, mas que podem encontrar, através da educação, estratégias para sua realização pessoal. Todas essas personagens criadas por Anna Ribeiro colocam em pauta a identidade feminina de sua época. São, portanto, representações de protótipos de mulher na cultura patriarcal. Porém, nos limites do território possível, lograram a expressão de suas vozes, desejos e seus anseios. Assim, “Território (possível) da escrita feminina”, de Nancy Vieira (In: SACRAMENTO, Sandra (Org.). Gênero, identidade e hibridismo cultural: enfoques possíveis. Ilhéus: Editus, 2009. p. 169-77), é um texto essencial para o campo dos estudos de gênero no Brasil.
Resumos Relacionados
- Anna E O Rei
- Anna Karenina
- Anna De Assis - HistÓria De Um TrÁgico Amor
- The Double Life Of Anna Day
- A Cúpula Das Vaidades
|
|