A ilusão da modernidade
(Isaias Carvalho)
A maioria esmagadora da população, especialmente no mundo ocidental, concentra-se em áreas urbanas. Essa “Urbis” é um conhecido projeto moderno na grande marcha da humanidade em busca da sociedade ideal. Quanto a este objetivo, a modernidade falhou drasticamente, mas deixou suas marcas profundas no modo como os homens se organizam espacialmente em sociedade e como esse espaço os cerceia e os faz buscar ar na superfície das rotinas estafantes, como alguém que se afoga. Isso significa que vivemos em um espaço moderno, mas com uma atitude pós-moderna, na qual a comunidade humana transborda de vitalidade, ou seja, o cotidiano das cidades, com sua pretensão de disciplina e uniformidade, não consegue sufocar o orgiástico como energia vital que move os desejos humanos.Essa tensão entre o espaço metropolitano e o desejo de viver o presente, as pequenas coisas da vida e o corpo é ironicamente retratada por Affonso Romano de Sant’anna em “A Ilusão do Fim de Semana”: “Há algo de errado nisto. E persistimos”, sinaliza esse autor ao final de sua crônica. É a ilusão da modernidade ou de seu grande projeto homogeneizador que se mostra ao homem produtivo e eficiente exigido pelo mercado tido como globalizado e mais exigente do que nunca. Qualquer feriado ou momentos livres são motivos de busca do prazer ou do natural, a corrida para as praias do litoral ou para o interior, um êxodo que se repete em escala monumental, uma operação de guerra. Podemos ver nos noticiários pessoas que passam até dez horas presas em engarrafamentos quilométricos para chegar às praias do litoral de São Paulo, por exemplo. De qualquer modo, esse parece ser um movimento comum aos aglomerados urbanos - desde as pequenas cidades até as grandes metrópoles - em graus distintos, mas tendo em comum a necessidade de "consumo de lazer", um tipo específico de consumismo, marca dos nossos tempos. É dessa ilusão que trato neste breve ensaio: o apelo ao consumo, que atinge a maioria da população, faz com que se estenda ao tempo livre a mesma dinâmica competitiva dos dias “úteis”. Entretanto, há ainda espaço para o diverso.Se para a modernidade o corpo era um “instrumento de trabalho”, no nosso tempo pós-moderno (termo em si já desgastado e insuficiente para descrever a transformação do cotidiano e suas relações) ele passa a ser (ou volta a sê-lo?) um lugar de prazer e sensações. Entretanto, o que tento perceber neste ensaio é a contradição ou convivência não pacífica entre o espaço moderno da metrópole e a visão pós-moderna do corpo e o debruçar-se sobre “os comezinhos prazeres”. O futuro do projeto anterior é o presente de hoje: Desse modo, foram procedidas a massificação das individualidades e a asfixia do presente e, ao voltarmos do fim de semana com a sensação de que viemos de uma guerra, aí começaremos a fazer novos planos para fugir da cidade. Planejaremos outro feriado e contaremos quanto tempo falta para a aposentadoria, como Sant’anna nos indica em sua crônica. Há definitivamente “algo de errado nisto”, mas ao ter consciência da necessidade de prazer e de viver o presente, o homem de hoje tem a possibilidade de viver o seu dia, mesmo que seja enquanto uma promessa do próximo fim de semana. Ou seria tudo uma ilusão? Falemos um pouco do nosso lugar. Salvador é um bom exemplo de uma cidade perpassada ao mesmo tempo pela modernidade estruturadora e pelo desordenado crescimento da população. A cidade literalmente quase não comporta a explosão de vitalidade, para utilizar o termo bem aplicado por Rezende, demonstrada em seu carnaval de rua de dimensões incomensuráveis em termos de espaço(s) ocupado(s) e de energia lúdica e sensual dispendida. Além dessa festa mor, as chamadas festas de largo, dentre tantas outras manifestações populares e/ou de guetos étnicos e culturais, que acontecem com uma frequência estonteante, reproduzem essa mesma configuração da pós-modernidade, do estilhaçamento de todos os discursos, é o retorno cíclico para a fruição de um encontro com o prazer de partilhar e de se espalhar por aí. A cidade também, mesmo que seja redundante dizê-lo, não comporta o seu povo harmonicamente, o que parece ser um problema comum às cidades todas, mas em especial àquelas que estão nas ex-colônias, como a nossa, onde a distribuição de renda lembra as relações econômicas na idade média. Não é meu objetivo aqui aprofundar o tema da exclusão social e cultural, mas é pertinente relembrá-lo, pois é minha tese de que essa exclusão é facilitada ou até mesmo propiciada por esse projeto urbano que não deu certo.Será tudo mesmo ilusório ou há espaços e atitudes alternativas e diversas a essa tensão entre o homem em busca de prazeres, inclusive o prazer de fazer nada, como a natureza parece ter mandado? A cidade comporta, sim, multiplicidades (múltiplas cidades) e diferentes vivências que podem e já começam a viver sem hostilidades ou exclusão mútua. Essa multifacetada existência urbana pode ser enriquecedora para aqueles que desejem "reconhecer" o outro, ou pelo menos experimentar "olhar" para o outro, o "olhar" do outro ou ser "olhado" pelo outro.
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