Morangos Mofados
(Caio Fernando Abreu)
... ao ler "Os Sobreviventes" o primeiro choque ocorre pela naturalidade com que o pau murcho, o dedo na boceta, a porra, o caralho, e outros; se insurgem na obra, não se configurando, no entanto, em sua essência, o seu âmago. A obra transcende a questão do gênero, mesmo que a aborde.
"Os Sobreviventes" tem tudo a ver com o fim do sonho – a derrocada dos ideais Iluministas no interior de cada um -, com a passagem de uma juventude rebelde para uma maturidade sem vislumbres, em que a passárgada não é mais aqui, um lugar que voltarei, mas lá, Sri Lanka, um lugar que ainda irei.
Por momentos o conto me lembrou uma canção de Elis:
" Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo – esticando no u – que fizemos, ainda somos os mesmos, e vivemos – esticando no e – COMO NOSSOS PAIS – se esvaindo em musicalidade ...".
Assim o foi, por exemplo, nos trechos:
"... um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar ..."
"... neste apartamento que pago com o suor ..."
E mais adiante:
"... caímos exatamente na mesma ratoeira... nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum..."
"Os sobreviventes" transcende o particular dos personagens envolvidos e nos atinge em cheio a todos nós que já desejamos uma coisa bem bonita, maravilhosa; que já tivemos esta fé enorme e esta crença de que poderíamos mudar o mundo. Mas passou. Estamos vivos, e isto é tudo.
À página 36, o primeiro parágrafo do conto, traz termos que denotam a angústia que se seguirá, pela passagem de uma grande dor:
- velha almofada amarela
- pastoras desbotadas
- empalidecida
- bordô mortiço
- melodia meio arranhada
O segundo parágrafo se inicia pela informação de que é noite, essa no entanto, não se dá de um modo direto, mas sim pela:
"... luz de mercúrio da rua ...".
Outra forma sutil de literariedade é a capacidade que a obra tem de nos surpreender em pequenas simulações do cotidiano, reflexos de nossa própria vida, normalmente não envoltos na problemática maior da obra, como a planta no corredor:
"... e caminhou para dentro atravessando o pequeno corredor onde, como
sempre, a perna da calça roçou contra a folha rajada de uma planta. Preciso trocá-la de lugar, lembrou, como sempre."
Aqui faço um parênteses (des)necessário para esclarecer que o cotidiano não está simplesmente em esbarrar em algo e só se lembrar de mudá-lo de lugar nesse momento, mas sim, a todas as lembranças que só nos ocorrem quando trazidas à situação. Como a luz de um cômodo, pouco visitado, queimada; ou, aos que lêem: aquele livro emprestado que só é lembrado na ocorrência de um contato.
Tem um momento em que a personagem fala sobre:
" – Umas coisas assim, ecologias, sabe?"
Hoje esta é uma discussão bem mais premente considerando-se, por exemplo, a instalação das multinacionais papeleiras – vide o conflito Argentina x Uruguai às margens do rio homônimo – do que o foi com as monoculturas da soja e do trigo. O deserto verde me parece bem mais assustador agora, deve ser pelo tamanho dos vegetais envolvidos, ou talvez porque acabar com as reservas de água seja mais inteligível e assustador do que acabar com a camada de húmus.
Partindo para um outro tipo de abordagem, o trecho abaixo pode ser extraído do conto e apresentado como exemplo à Teoria da Enunciação de Benveniste:
"- Tá bom - ela disse.
- Tá bom – ele repetiu. E pensou que quando começavam a falar desse jeito era um sinal tácito para desligar."
Assim podemos fazer a diferenciação entre:
- a oração: "Tá bom" – unidade da língua de natureza gramatical;
- o enunciado: tiau, até mais, etc.
Os contos do Caio, os narrados em primeira pessoa, se apresentam como contos em que a tônica não está na ação. Não nos defrontamos, ao lê-los, com um personagem que age, mas com alguém que pensa.
O autor, ao longo da obra – até a parte que li – nesta busca frenética de reconhecimento e autoconhecimento, questiona bem mais a si mesmo ( natureza ) do que o mundo real em que está inserido ( meio ).
Além do ponto é um conto "pra dentro". É "eu" falando com "ele" mesmo e antevendo, materializando, a participação do outro para a continuidade do processo.
E que processo é este?
É o processo de inserção equilibrada no mundo. A fala do personagem pode ser comparada – espero que sem exagerado esforço – ao Ego – centro da consciência -; o interlocutor que o interpela pode ser comparado ao Superego – censura social – enquanto que o Além do ponto representa a vitória do Id – dos instintos – o avançar o sinal, apesar da placa de advertência.
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