Oito e Meio de Fellini
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Drama metalingüístico. Às vésperas de começar um novo filme, o cineasta italiano Guido Snaporaz revela-se uma incógnita tanto à imprensa quanto aos colaboradores mais próximos, já que ninguém sabe do que se trata o tal novo filme. Com o argumento sendo criticado até pelo colaborador no roteiro, além das reclamações da protagonista querendo saber, afinal, qual é o seu papel, e de todos os detalhes da produção (que inclui até a construção de uma nave espacial), Snaporaz vê-se ainda às voltas com uma crise de inspiração criadora. Às recordações da infância, como o ritual do banho e o rigor da educação religiosa, juntam-se as paixões desencontradas do presente, encarnadas pela amante Carla, pela esposa Luisa e pela recorrente figura feminina que povoa seus devaneios.
Ainda que tenha desagradado a turma do movimento neo-realista, do qual o diretor / autor Federico Fellini fez parte, a ousadia narrativa de Oito e Meio não deixa dúvidas quanto a sua importância. À época, o cineasta já era prestigiado internacionalmente, já realizara Os Boas Vidas e Noites de Cabiria (o título Oito e Meio se refere aos oito filmes realizados até então, mais o primeiro, que co-dirigiu), e pela primeira vez tinha diante de si uma grande produção e carta branca para filmar o que quisesse. O período era de radicalização narrativa e experiências de linguagem, e Fellini tratou de abordar a própria criação como tema, misturando-a à memória, à vivência e à observação. Ou seja, àquilo mesmo de que a criação é feita.
Embora negando tratar-se de obra autobiográfica, em Oito e Meio Fellini antecipa elementos daquele que viria a ser o seu título mais representativo, o antológico Amarcord, e inicia o estilo a ser definido como "felliniano". Num universo nostálgico, lírico mas repleto de ironia, circulam tipos que remetem a fotos antigas, de expressividade fascinante e gestual normalmente teatralizado. Podem ser excêntricos e enigmáticos, expansivos ou introspectivos, melancólicos, libidinosos, exuberantes. Do homem que lê pensamentos ao operário que faz uma ponta dançando, para Fellini parece não existir o termo "pessoas comuns": todas elas são rico material para uma narrativa que promove um olhar poético sobre as coisas, não raro encerrando em celebração à vida. O bom gosto na criação de imagens e no entrelaçamento delas é aqui visto nas diversas seqüências de sonho, desde a inicial (com o motorista que sufoca dentro do carro para depois sair voando) até a versão onírica do encontro com o cardeal numa sauna. Ou ainda na rebelião das mulheres contra Snaporaz, um dos devaneios utilizados para o exercício de uma (auto) crítica ao comportamento masculino, levada ao extremo em Cidade das Mulheres.
O filme esbanja símbolos, eles mesmos criticados impiedosamente pelo roteirista colaborador (que depois recebe o troco). Impelido a criar, o cineasta / artista sente-se pressionado, foge e rejeita tanto a relação com o mundo exterior quanto com o interior, ao renegar os próprios personagens (que não passam de versões, idealizações, espelhos daqueles com quem convive). "Destruir é melhor do que criar, quando não se diz o essencial". O processo criativo passa a exigir uma reconciliação entre a realidade e a fantasia do diretor, antes que o envenenamento das relações que ele vai promovendo não tenha mais solução. O reencontro consigo mesmo, e a valorização da simplicidade que o causou, é mostrado de maneira tão bonita e festiva (a que muito se deve a música do colaborador habitual Nino Rota) que contagia o público. Oito e Meio, com sua exuberância e pretensiosa inquietação, até pode estender-se demais nos delírios do protagonista e com isso espichar-se para além do suficiente. Mas ainda assim é filme rico, estimulante, belo.
Obs.: Em 2009, o cineasta Rob Marshall levou às telas uma refilmagem de Oito e Meio. Transformando o clássico existencialista de Fellini num musical (que já havia passado pelos palcos), Marshall realizou Nine, com Daniel Day-Lewis e uma constelação de atrizes que iam de Sofia Loren à vocalista da banda Black Eyed Peas, Fergie, passando por Penelope Cruz e Nicole Kidman. O resultado foi um fiasco.
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