Pensando o Ritual: Sexualidade, Morte, Mundo
(Mario Perniola)
O italiano Mario Perniola constrói uma obra instigante ao colocar como protagonistas da especulação filosófica noções comumente vistas como superadas, relegadas a segundo plano ou como empecilhos ao real, pois, efetivamente, pertencentes ao mundo sensível, não estáveis, que engendram prejuízos ao acesso da realidade: simulacro, ritual e trânsito. "Pensando o Ritual", publicado em 2000, reúne ensaios do filosófo italiano publicados ao longo de uma carreira acadêmica fecunda e rigorosa. Na "pugna" entre o original e a cópia, Perniola destaca o simulacro como emancipado do seu modelo primevo; a dicotomia platônica entre essência e aparência é superada justamente nessa independência que a cópia alcança pela fidelidade ao seu original. O trânsito, deslocamento constante em via de realização, permuta e recomeço, faz perceber o caráter provisório das coisas. A sua passagem última (nesse ponto inspirado no amor fati nietzschiano) é do presente para o presente, do mesmo para o mesmo. O ritual, um rito sem mito, tem como referência a cultura romana. Roma em seu apogeu, cidade sem origem. A desmitificação do mito, os efeitos dos eventos sacrificais em um solo de estrangeiros simula uma cidade. Falando de ritual Perniola concede espaço em sua análise para o sincretismo, para a repitição diferente e para nascimento e morte como dados culturais. Sobre o rito sem mito, o filosófo italiano diz, "No rito sem rito, morte e vida passam uma para a outra. Isso, por um lado, assinala a morte do dado natural e do dado mítico; por outro, o ingresso em uma dimensão que, entretanto, não é mais que a confirmação ritual do que já está presente".
A sexualidade, a morte e o mundo são investigados por Perniola sob a égide do confronto. Esses conceitos complexos, acusados até de fealdade, obstáculos, muitas vezes, para a beleza, aparecem em "Pensando o Ritual" para serem descortinados e consagrados, expostos em seus aspectos mundanos e paradoxais (nesse contrassenso à primeira vista, também, se inclui as noções de simulacro, de trânsito e de rito sem mito). Observação que busca examinar (e superar) dicotomias e polaridades, como a estabelecida entre original e simulacro; a cópia que ao exigir autonomia trespassa o seu estigma de imitação. Dialogando com autroes que ergueram bifurcações, consolidaram ou revertaram expoentes e que moldaram ou causaram "curto-circuito" ao caráter eterno de certos estatutos culturais, sociais e religiosos, Perniola traça um caminho que se choca com o normativo e abre canais de contestação e afinidades com a Roma Antiga, o Barroco e pensadores como Platão, Nietzsche, Heidegger, Plutarco, Walter Benjamin, Freud, Gilles Deleuze, Baudelaire, Klossowski, entre outros. Muitos dos temas tratados ao longo de nove capítulos são releituras de um mundo desafiador, no qual a arte e a sociedade (em seus âmbitos cultural e religioso) gravitam situando-se num espaço próprio para o prélio da tradição com a transgressão. Mario Perniola fala com frescor literário e sagacidade sobre a Vênus da religião romana, mas dela como veneração, venia (graça divina, ajuda), venerium (sucesso) e veneno. Perniola insinua a erótica do trânsito e debate com a metafísica ocidental, com filósofos distintos, a saber George Bataille e Platão. Especulação que germina assuntos como a erótica do uso e a arte amatória. Num, outro capítulo, a veste e o nu são desfraldados em seus contornos eróticos e naturais. A pele se torna roupa numa representação da epiderme e dos órgãos. Na erótica do século XXI, a nudez eletrônica, a relação nu e corpo, o strip-teaser, além do peep show lançam questões sobre o erotismo midiático.
Sobre a imagem e o simulacro no que tange a identidade, Perniola percebe no conflito entre iconofilia e iconoclastia um campo fértil para a discussão acerca da religiosidade e da metafísica ocidental. Mais adiante conceitos da fenomenologia, o eterno retorno, o ser-para-a-morte heideggeriano, adiversão e o recalque da morte, o tempo e a história, o rito do rito, o decoro e a cerimônia serão revelados e esmiuçados na procura obstinada pela multiplicidade empreendida por Perniola. O capítulo dedicado à arte de Mamúrio Vetúrio, ferreiro considerado o primeiro artista de Roma, é emblemático no que tange a revisão da rejeição do simulacro. Durante o governo de Numa, Roma foi assolada pela peste e à um escudo recebido pelo Imperador foi creditado o fim da epidemia. Numa para proteger o escudo que declarou ter sido entregue pelos deuses a ele para salvar a cidade, decide encomendar cópias para que o escudo verdadeiro não fosse furtado. Onze perfeitas imitações do escudo foram criadas por Mamúrio Vetúrio. Depois de feito o serviço e colocados lado a lado com o escudo modelo, nem Numa foi capaz de distinguir qual dos escudos era o que deu "vida" aos outros. Primazia da técnica qua amplia o original e ao fazê-lo desmitifica-o garantindo sua permanência pela exatidão da réplica que o salva, assim, para a posteridade. Como escreveu Márcio Seligman-Silva, "O 'triunfo da técnica' mostra em que medida a fidelidade reprodutora, a multiplicação, desmonta uma série de 'certezas' da nossa cultura" (Revista Cult, Ano IV, junho de 2001).
Perniola conjuga a hipótese de que no cotidiano a multiplicidade escapa aos domínios de uma invariável identidade, que o movimento é parte intrínseca do mundo e que a relação origem/cópia não se deixa apreender pela vontade do desejo do Uno e do Ideal. Simulacro-simulação, trânsito-movimento constante, ritual-repitição são nocões que forjam uma salutar expedição pelo edifício erguido pela filosofia.
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