Código DA VIDA
(SAULO RAMOS)
Não raramente, os escritórios de advocacia cuidam de casos
que, na vida real, ultrapassam, em emoção e suspense, os romances
de ficção, os filmes de mistério, drama, ação e comédia, as novelas de
televisão. Mas acabam nos arquivos. O sigilo profissional impõe aos
advogados o dever do silêncio eterno. O público jamais conhecerá
essas histórias fascinantes dos dramas humanos vividos nos
processos que correram em segredo de justiça.
Resolvi contornar essa regra ética, sem quebrá-la. Neste livro,
narro um desses casos, trocando os nomes das pessoas. É
impactante.1 Uma senhora acusa o ex-marido de praticar atos
obscenos com os próprios filhos menores e propõe contra ele ação
judicial para extinguir seu direito de ver as crianças. O juiz concede
medida liminar e proíbe o pai de ter qualquer contato com os
menores.
Desesperado, o pai procura um advogado, que se recusa a
defendê-lo. A prova é cruel: uma gravação. Os filhos contam atos
terríveis e imorais que foram forçados a praticar.
Ameaçando suicidar-se, o cliente pede socorro ao meu
escritório. Meus companheiros e eu aceitamos a causa. Começa
nesse instante uma longa, fantástica e emocionante história de
conflitos incríveis. Ódio, psicose, amor. Atuação de um Magistrado
excepcional e de um Curador de Família exemplar, expoentes do
Judiciário brasileiro. Advogados trabalhando como detetives.
A morosidade no andamento dos processos judiciais e a
dificuldade na cuidadosa produção de provas permitem-me jogar
com um tempo virtual e, assim, interromper a narração em vários
pontos, aproveitando para contar fatos da vida pública de nosso país,
me limito àqueles com os quais o destino fez minha vida cruzar.
Descrevo as espantosas circunstâncias em que tudo isso se deu.
Os processos judiciais enfrentados na ditadura. Florestan
Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Vladimir Herzog,
cadernetas Prestes. Impossibilidade de defender os acusados
mediante invocação do Direito. Processo que fiz desaparecer.
Humilhação da Igreja Católica perante os militares.
Fatos e coincidências vão acontecendo. Conheci Mário Covas,
lancei-o, a pedido de Jânio, candidato a prefeito de Santos. Perdeu a
eleição. O candidato eleito morreu antes da posse. Demanda no
Judiciário contra a investidura do vice. Vinte e cinco anos depois,
ocorre caso semelhante com a doença de Tancredo Neves, e vem a
oposição à posse de José Sarney. Novamente, Mário Covas e eu
envolvidos pelo destino no desate da questão, ele de um lado, eu do
outro. Por que eu estava lá? Fico um pouco arrepiado, por não
desvendar a codificação que esses fatos desenham em minha vida.
Vem a Assembléia Nacional Constituinte, ocorrência mais
importante da história contemporânea do Brasil. O que aconteceu
nos bastidores?
E muitos tramavam voltar ao poder. Eu estava lá. O que fiz e por quê?
Aceitei participar do Governo Sarney. Passei a viver espantos
sucessivos. O Brasil não tinha advogados para defender a União.
Coisa fantástica! O país dos bacharéis sem defensores judiciais.. poderia
existir sem esse mínimo de disciplina jurídica? Dá para acreditar?
Não tinha sequer uma lei de defesa dos direitos dos deficientes
físicos! Não possuía nada que protegesse os bens de família, a não
ser uma velharia complicada do antigo Código Civil.
Tantos e tão diversos problemas tive que resolver. Eram
deficiências do meu país. Já que eu estava lá, o melhor era procurar
as soluções em vez de perguntar o porquê de estar lá.
Por que um menino do interior chegou a Consultor Geral da
República e a Ministro da Justiça, quando desejava apenas ser
advogado?
Impeachment de Fernando Collor. Processo no Supremo
Tribunal Federal. Advogado do Senado da República, o que sofri para
vencer aquela causa! Fatos que nunca vieram a público. Terminado o
julgamento, pensei comigo: isso nunca mais vai acontecer no Brasil.
Imperdoável ingenuidade. Aconteceu e, pior, a tal ponto que o
processo de Collor poderia hoje passar para o juizado de pequenas
causas.
Conto tudo, mas procuro ser breve, porque o principal é a
história das crianças submetidas a um simbólico, mas feroz, tiroteio
entre os pais separados. O julgamento emocionante, conduzido por
um juiz fabuloso. E o incrível desfecho da história mais de vinte anos
depois em Londres, cidade predileta dos escritores de mistérios
policiais.
Aproveito para narrar, sem quebra da ética, algumas histórias
curiosas de várias pessoas célebres com as quais me envolvi no
exercício profissional: Roberto Carlos, Che Guevara, José Sarney,
Sérgio Armando Frazão, Ronaldo Cunha Lima, Alceni Guerra,
Eurícledes Formiga, José Frederico Marques, Mário Simonsen,
Juscelino Kubitschek, Lázaro Brandão, Celso da Rocha Miranda e
outros.
Nas minhas narrativas, faço críticas amargas a ministros do Supremo
Tribunal. Cheguei a mandar um deles à merda. Censuro
severamente políticos, suas mazelas e mediocridades, e as tentativas
de golpe na Constituinte. Denuncio os agentes da ditadura que
cruzaram meu caminho. Todos os fatos aqui narrados são absolutamente verdadeiros,
com nomes fictícios nas causas de Direito Privado. Nas questões
públicas, os nomes dos políticos são expressamente mencionados.
Mas, em mim, há um pouco de lirismo na paixão pela
advocacia, embora tenha ela complicado minha existência com os
fatos históricos dos quais participei. Lidei com todos os códigos —
penal, civil, de processos, de defesa do consumidor, até com o código
de Hamurabi — e acabei tendo que lidar com o código da vida. A
história compõe a genética da nação. Pertenço ao meu país com
todas as minhas entranhas. Não há mais tempo de mudar. Daí o
dever de registrar o código da vida, a minha.
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