Almas a Venda
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Ficção científica/drama. Durante os ensaios da peça Tio Vânia, de Checov, o ator Paul
Giamatti se vê em crise emocional e incapaz de dissociar-se do personagem.
Através da imprensa vem a saber da existência de um serviço de depósito de
almas, onde cada cliente pode, como se extraísse um órgão defeituoso qualquer,
retirar a própria alma e mantê-la num cofre pelo tempo que julgar necessário,
para “reimplantá-la” depois, se quiser. A operação é realizada e, não obtendo o
resultado esperado, Paul tenta desfazer o negócio. Vem então a descobrir que
Nina, uma russa que trabalha como “mula” para traficantes, literalmente roubou
a sua alma e levou-a para a Rússia, a fim de implantá-la na esposa do chefe do
tráfico, uma atriz local de telenovela que julga estar carregando a alma de Al
Pacino.
Convivemos íntima e diariamente
com o comércio, e diariamente deixamos que ele ocupe espaços cada vez maiores
de nossas vidas. A economia de mercado está em nosso cotidiano e em nosso
imaginário, e, na impossibilidade de encontrar uma alternativa para ela, temos
visto na ficção autores que demonstram sua perplexidade ou horror levando a
coisa ao extremo. Em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, o
protagonista vivido por Jim Carrey lutava para recuperar a memória, extraída da
mesma forma que se extrai um dente. Neste Almas
a Venda (Cold Souls, EUA/França,
2009), o pesadelo da comercialização do não-comercializável vai além. Aqui, já
é possível tirar, e vender, a única coisa que, teoricamente, nos torna
individuais, especiais, únicos, e que nos diferencia de animais ou objetos: a
alma.
Deprimido e infeliz, o
atormentado Paul utiliza seu cartão de crédito e arranca fora a alma imaginando
livrar-se de um fardo, podendo assim não apenas assimilar o personagem em que
trabalha, mas ter uma vida melhor com a esposa. Acaba fracassando em ambos. Desprovido
de alma, Paul a princípio sente-se “vazio, leve e entediado, mas ótimo”. Aos
poucos se dá conta, porém, de que sua vida piorou, pois perdeu a empatia com
aqueles que o cercam. O centro do mundo passa a ser ele mesmo, e o sofrimento
do outro se torna incompreensível e irrelevante. Nada pior para um ator (como
interpretar sem alma?), e nada pior para um ser humano, embora seja este o
caminho para onde o fetiche do mercado esteja levando a sociedade. Tudo está ao
alcance de um toque, então não precisamos de mais nada. Ou de ninguém.
Os desdobramentos desta situação
revelam a engenhosidade da trama (a cargo da diretora e roteirista Sophie
Barthes, estreando em longa-metragem). Nina, a “mula de almas” interpretada por
Dina Korzun, a princípio gelada como a paisagem russa, transportou tantas almas
diferentes dentro de si que absorveu um pouco de cada uma, passando a sofrer
com sua terrível profissão. A diferença entre as pessoas reflete-se também na
diferença entre suas almas: enquanto algumas parecem pedrinhas cinzentas,
outras lembram jujubas, e outras ainda, como a de Paul, um grão de bico (“Como
algo tão pequeno pode pesar tanto?”, pergunta um personagem). A narrativa,
serena e extremamente sensível, pontua com humor delicado, belas imagens e uma
melancólica trilha sonora o drama fantasioso, culminando na tocante sequência em que Paul olha dentro da
alma da operária e poetisa russa (que está carregando em seu interior, enquanto
não recupera a sua própria). A estranheza e o aperto que o protagonista sente são
imediatamente compartilhados pelo espectador.
Almas a Venda é um belo filme, visualmente atraente e
dramaticamente criativo. Mas tem como mérito maior a interpretação de seu
protagonista. Esquisito, careca, barbudo e com olhos esbugalhados, Paul
Giamatti possui um tipo físico comum dotado de grande expressividade, e que vem
acumulando momentos memoráveis em sua carreira, como em Sideways ou Anti-Herói
Americano. Aqui, emprestando o próprio nome ao personagem para aumentar o
realismo e a estranheza da história, ele enfileira bons momentos. Seja durante
os ensaios de Tio Vânia, ou no
desconforto na clínica de almas (principalmente diante dos outros usuários, que
agem naturalmente diante do bizarro serviço), a todo instante esse tipo comum,
em nada comparável fisicamente aos galãs citados pela esposa do traficante
(além de Pacino, fala-se em
Johnny Depp , Robert Redford e Sean Penn), mostra o quanto é
mais importante ter – como ele tem – uma alma bela e rica.
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