O Diabo na Terra de Santa Cruz
(Fabricio Gustavo Dillenburg)
O
livro escrito pela professora Laura de Mello Souza, tem como subtítulo
Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colonial e tem como base, documentos
encontrados na antiga metrópole, Portugal. Entre as fontes, a autora destaca as
que tratam das visitações do Santo Ofício à colônia, as devassas eclesiásticas
e os processos referentes a réus brasileiros.
No
princípio, pensou Mello e Souza que a feitiçaria colonial ligava-se direta e
intrinsecamente à magia africana. Todavia, à medida que os trabalhos de
pesquisa evoluíam, a autora percebeu que, na verdade, essa magia que se
desenvolvera no Brasil ligava-se, em
primeiro lugar, a uma utilidade cotidiana, buscando resolver problemas
concretos, e, em segundo lugar, estava intimamente ligada à religião cristã,
inclusive através das invocações a santos e santas do cristianismo, quando não
ao próprio Cristo.
Laura
deixa nítido o fato de que, durante os dois séculos em que essa transformação
se dá na visão sobre a colônia, desenvolve-se não apenas o tráfico de escravos,
mas o próprio emprego da mão-de-obra escrava de forma genérica, o que
contribuiu, certamente, para a negatividade associada às terras do além-mar,
até porque fazia-se necessária uma justificativa da escravidão. Por continuidade
desse raciocínio, para garantir a dominação colonial, e mesmo os métodos
utilizados para essa dominação, negava-se, muitas vezes, o caráter humano tanto
ao colono mestiço como ao escravo negro, principais focos do medo de
insurreições.
No
século XVIII, em definitivo temos a função purgatória da colônia cedendo espaço
para uma visão de verdadeiro inferno. Daí os choques resultantes do formalismo
europeu proveniente da Contra-Reforma e da religiosidade ampla e sincrética da
colônia brasileira. Eram duas realidades diferentes que se chocavam, entrando
em conflito e disparando os mecanismos opressores da metrópole, que surgem cada
vez mais violentos, sob a égide inquisitorial. E é justamente nos processos do
Santo Ofício que encontramos de forma nítida a miscelânea religiosa em que se
trama a vida colonial.
Como
o próprio imaginário europeu, a feitiçaria na colônia era multifacetada e
heterogênea, constituída sobre um duplo: um fundo de práticas mágicas típicas
de culturas “primitivas”, africana e indígena, e um fundo de práticas mágicas
típicas da civilização européia, sendo
esta caracterizada pela impregnação de um paganismo secular, que ainda manter-se-ia
vivo devido à chamada “cristianização imperfeita”, a que a Contra Reforma
apregoava consertar.
O
tom geral na colônia dava-se, pois, por uma concomitância de repúdio e
tolerância às práticas mágicas e religiosas, sendo o máximo dessa intolerância
expressa pelas devassas e perseguições do Santo Ofício.
Apesar
disso, a feitiçaria se fazia presente no dia-a-dia dos indivíduos,
principalmente entre as camadas menos favorecidas, através de vizinhos que se
delatavam mutuamente, em troca de alguma vantagem, ou através de filtros e
fórmulas amorosas, meios de previsão do futuro, ungüentos para curar doenças e
feridas, benzeduras, etc. Sobre os feiticeiros descarregavam-se as cargas da
população, suas angústias, medos e incertezas. Enfim, seus “demônios
interiores”. Através dos depoimentos desses mágicos, homens e mulheres,
identificam-se elementos do inconsciente coletivo colonial. Era o sonho de cada
um que se manifestava nas palavras desses magos.
Deriva
desse contexto a riqueza das leituras feitas sobre os casos inquisitoriais
envolvendo colonos, como no processo em que o escravo negro José Francisco Pereira,
sob tortura, manifestou delírios eróticos, com o diabo lhe aparecendo sob a
forma de homem ou mulher, mas sempre brancos. De outra parte, há o caso da anã,
“feiosa”, Catarina Maria, que se dizia amante do diabo. Este, segundo a
denúncia, a deflorava sempre na forma de um homem negro. A elite se via
atacada, assim, por ambos. A anã, em especial, buscava resgatar sua dignidade
canalizando, através da imaginação do ato com um negro, o desprezo que lhe
votavam os homens de sua condição.
As
correntes populares medievais, seguidamente favoráveis à tolerância religiosa,
foram progressivamente sufocadas, abrindo espaço para a eliminação dos que
antes ajudavam. A “caça às bruxas” tornava-se “legalizada” pelo novo contexto
que se expandia, sendo a feiticeira com quem a população convivia diariamente
vista então como um inimigo a ser eliminado. Tudo graças ao temor difundido
sistematicamente pela Igreja, com a ajuda do Estado.
À
medida em que o discurso erudito foi impregnando o popular, a posição arcaica,
“familiar”, do demônio, foi se metamorfoseando para a tradicional visão que,
hoje, ainda prevalece. A impregnação do discurso popular pelo erudito teria se
dado pelo temor à repressão, pelo próprios editais do Santo Ofício, e pelos
ataques generalizados pela Igreja, sendo que, no século XVIII, as manifestações
que antes eram vistas sem maiores ressalvas, sendo até “permitidas” ou
“entendidas” (como as cerimônias indígenas ou os calundus africanos), passaram
a ser associadas a reuniões demoníacas. Temos, portanto, o saber erudito
concluindo a lapidação das suas concepções acerca das práticas
mágico-religiosas da colônia maior de Portugal. Esses aspectos ficam claramente
demonstrados nos processos sobre mandingas, feitiços, patuás, etc, que têm
maior incidência justamente nesse século.
Laura,
afinal, conclui que, apesar de tudo, respirando por entre os mecanismos
opressores oficiais, os sincretismos sobreviveram no plano mágico-religioso,
fundindo sem maiores problemas o sagrado e o profano, que conviveriam juntos e
se completariam num todo extremamente rico.
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