Alexandria
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Parafraseando André Gide –“ Com os belos sentimentos faz-se a má
literatura”- concernente à destruição sofrida pela biblioteca que ficou na
história da humanidade, a de Alexandria, destruída pelos “cristãos”, é possível
afirmar: com os belos sentimentos faz-se
a má religião. Todos os sentimentos ditos belos – o zelo, a fé, a
devoção, a lealdade – podem na verdade, ser outros menos nobres – o medo, a
revolta, o ódio, a inveja, a cobiça. Como justificar o tamanho da violência impetrada
contra a biblioteca, contra os assim chamados pagãos, contra os judeus e
àqueles que não se submeteram ao batismo cristão?
A princípio, na busca da compreensão dessa imensa mácula na história do
cristianismo, é possível citar diversas causas, dentre elas:
·
o ódio que os excluídos sentiam em relação aos
letrados. Os que tinham acesso ao saber eram poucos, como ainda tem sido (se
pensarmos na qualidade da educação que tem sido oferecida às classes menos
favorecidas). Aqueles gozavam de uma vida confortável: alimentação, moradia, educação,
lazer; enquanto esses morriam de fome. Foi ao tomar consciência da fome entre
os humildes que Davus, escravo da casa de Hipátia, decidiu tornar-se cristão.
·
o medo de desobedecer às Escrituras era tido
como o mesmo que desobedecer a Deus.
·
analfabetismo – a inexistência da competência
leitora entre os do povo contribuiu para que esse fosse manipulado. Qualquer um
que tenha lido os Evangelhos sabe que Jesus Cristo foi um homem pacífico. Quando
em vida, reduziu os dez mandamentos de Moisés a dois: amar a Deus com todo o
coração, com toda a alma, com toda a mente e com todas as forças; amar os
outros como a si mesmo.
Quando no momento de sua prisão, um de seus discípulos arrancou a orelha
de um dos soldados, ele a restituiu.
·
ambição – houve quem, por ansiar o poder até
então distribuído por Roma somente aos oriundos da educação formal, manipulou
os textos da Bíblia segundo seus interesses. Propositalmente deixou de ensinar
a paz. Ensinou o ódio, a vingança, a guerra. Criou um exército de assassinos.
“Eu acredito na filosofia” – foi a resposta de Hipátia, quando perguntada
sobre ter crença em Deus.
Ela, uma astrônoma conceituada entre os grandes da cidade de
Alexandria, outrora professora na escola anexa à Biblioteca. Com o crescimento
do poder do cristianismo intolerante em sua cidade, afirmar crer na filosofia e
não no Deus cristão era perigoso por pelo menos três razões:
·
para os cristãos o seu deus era a autoridade
suprema;
·
para eles a mulher devia ser submissa;
·
porque eram tempos em que o direito à vida, à
expressão, à crença e à religião estavam suspensos.
De onde a
coragem dessa mulher? E por que esse apego à filosofia? Que é a filosofia?
A filosofia é o questionar sobre a essência das
coisas. Esse questionamento, esse constante interrogar - O que é isto? - Confere a quem interroga a possibilidade de
ver além do que é dado, de ver o que há por trás dos dizeres e dos atos dos
homens. Esse querer saber do mais profundo exige do inquiridor uma constante
busca pelo conhecimento, ferramenta com que aborda a realidade.
“Que espécie de vida seria essa em que não posso ser
o que me tornei, uma mulher livre porque questiona?” Poderia ter sido esse a
última questão dessa mulher que morreu apedrejada, porque não se dobrou ao
cristianismo irracional e destrutivo que varreu a cidade e a biblioteca de
Alexandria.
Todos os professores de jovens a partir dos dezesseis
anos, principalmente daqueles apáticos ou rebeldes, deveriam reservar algumas
aulas para assistir e discutir esse filme com eles.
A discussão poderia ser sobre o Estado de Direito no
qual vivemos. Que são direitos? Quais os que nos são assegurados? Em que
documentos constam? A observância deles, quão benéfico tem sido? Quais ainda só
no papel? Que mundo, que país, que
sociedade queremos e qual nosso papel na construção dele e dela?
É preocupante
que muitos jovens terminem o ensino básico sem terem lido e discutido com seus
professores ao menos o capítulo cinco da Carta Magna, que trata dos direitos e
garantias fundamentais.
A educação para o engajamento, para a valorização da vida, tem recebido
pouca importância em nossas escolas. A escola pública, tal qual a de
Alexandria, anda alienada do que vem ocorrendo fora dos seus muros.
É de Hölderlin, poeta alemão, a crença de que a identidade na diferença é
a essência da beleza; o ser é justamente belo por se identificar com o que lhe
é diverso, se se identificar com o que lhe é diferente. Quando a escola e seus
profissionais assumirem como tarefa maior ensinar os educandos a serem, já
terão cumprido sua missão. O tempo em que vivemos e os modos de ser da
sociedade têm mostrado que a escola que temos, que deveria primar por dar às
crianças e jovens uma formação que os capacite a co-gerir a polis, tem falhado
vergonhosamente. E se não ocorrerem mudanças em sua estrutura, em sua cultura,
as invasões dos espaços de apuração quando dos desfiles de Carnaval, as
invasões dos campos de futebol, das destruições das estações de metrô e de
ônibus, ocorrerão com muito mais frequência, intensidade e proporção do que se
imagina. E o retorno da suspensão dos direitos à vida, à segurança, à expressão
estarão se avizinhando. Façamos algo. A escola não pode tudo, mas pode alguma
coisa, já dizia Paulo Freire.
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