Vila do IAPI: Relações Topofílicas
(Letícia Maria Barbosa)
O ambiente físico aparece no imaginário social configurado em espaços que se projetam, nos sonhos da humanidade, como um mundo ideal: a floresta, o campo, a praia, a cidade, a ilha, o bairro. Topus significando lugar, e philia no sentido de filiação, afeição — topofilia é o laço afetivo entre a pessoa e o lugar, a relação entre paisagem, memória e cultura; difuso como conceito vivido, mas concreto como experiência individual. Onde visão de mundo é a vivência do real na forma como é concebida por cada um, e compartilhada num território comum. Mobilizando atitudes e construindo identidade: identificar-se, num processo reflexivo, de espelhamento; e identificar-se com, processo relacional, dialógico. Inseridos numa relação social dinâmica, em movimento, produzindo integração na diversidade. O estudo da geografia de um território indiferente às pessoas que o ocupam soa incompleto. Na perspectiva da geografia cultural — metáfora da cultura e da paisagem como texto — a autora desta dissertação, Letícia Barbosa, vai a campo e colhe os depoimentos de moradores e ex-moradores da Vila do IAPI. Discursos que expressam uma percepção não científica do real, cuja leitura, contemplada por um referencial teórico, se converte em fonte de conhecimento. Reconciliando a produção acadêmica com a sociedade — para a qual se destina, em última instância.Denominada Conjunto Residencial Passo D'Areia — bairro a que pertence, oficialmente —, a Vila do IAPI surge num contexto de crescimento populacional e expansão urbana e industrial em Porto Alegre, como um projeto habitacional do governo Vargas para as classes populares, construído entre 1942 e 1954. Seu desenho arquitetônico foi inspirado no conceito de cidade jardim, formulado na passagem do séc. XIX para o XX pelo socialista-reformista inglês Ebenezer Howard, tributário das ideias dos socialistas-utópicos da primeira metade do séc. XIX.Projeto ousado, para 15.000 moradores — população que corresponderia a 16ª cidade do estado, na época —, rompe com a padronização estética dominante, combinando diferentes tipos de edificações. Cria rede autossuficiente de comércio e serviços locais, equipamentos de lazer e espaços de convivência comunitária. Preservando o meio físico e a paisagem e privilegiando a arborização e conservação da natureza. Apartada do centro, a Vila do IAPI foi o vetor da urbanização, da expansão do comércio e da indústria, no eixo norte da cidade. Em parte por isso, o IAPI cultural transcende o IAPI geográfico: moradores dos arredores se assumem como sendo da Vila. O que evidencia o papel mediador da cultura na relação do indivíduo com a sociedade — e lhe confere status de bairro.Com a sua característica histórica criou identidade própria, através da memória afetiva e das representações simbólicas dos moradores. As narrativas verbalizam sentimentos de pertencimento, qualidade de vida, nostalgia pelo vivido, exercício de liberdade, vida em comunidade e orgulho pelo lugar. Trazem reminiscências dos desfiles de carnaval, o jogo de bocha, parques de diversões, festas juninas, o futebol e jogos infantis; lembram figuras do cotidiano, cuja persona permanece no imaginário; apontam artefatos, referências espaciais — a leiteria, a AMOVI, as tendas, o laguinho, o Bar 44, o monumento, a escola —, que se constituem como mitos e constroem o caráter mítico do lugar. Por outro lado, como adverte a autora, a memória é seletiva e tende a uma idealização. O que remete ao processo de descaracterização, esquecido nos relatos, por construções e reformas clandestinas — cercamentos, puxados, garagens —, que alteram a configuração arquitetônica. Transgredindo a legislação que instituiu o IAPI como Área de Interesse Cultural no Plano Diretor da cidade. Objeto de crítica pelo arquiteto e ex-morador André Lapolli em sua dissertação Vila do IAPI: Crônica de Uma Morte Anunciada.Outro aspecto apenas tangenciado nos depoimentos, mas testemunhado por pessoas de fora: a vocação por um certo irredentismo, uma rebeldia existencial e política, sobretudo nos anos 60/70, que fez da Vila um dos berços do rock e da Contracultura, em Porto Alegre....No IAPI os hippies chegaram antes... O IAPI era Rolling Stones, Beatles seria talvez o Menino Deus... —, escreve o crítico de Zero Hora Juarez Fonseca (em anexo à dissertação). Já compararam o IAPI com o Greenwich Village (bairro dos intelectuais de esquerda de Nova York), mas não tem nada a ver. Se é pra comparar com algum lugar mítico, compare-se com os bairros do sul de Londres, onde nasceram – do rancor proletário, da rebeldia com causas econômicas, do inconformismo punk – o Clash e os Sex Pistols, que incendiaram a fornalha do rock-contestação nos anos 70 —, conjectura o jornalista Eduardo Bueno, o Peninha (2º Caderno, ZH,18/06/90).Esse caldo de cultura produziu, por exemplo, Elis Regina, reconhecida como uma das maiores cantoras brasileiras, que cursou o primário no G. E. Gonçalves Dias. Fughetti Luz, frontman do Liverpool e do Bixo da Seda, bandas do IAPI com projeção nacional, que foram do tropicalismo ao rock'n'roll; cujo baterista, Edinho Espíndola, é um dos depoentes no trabalho em tela. O colégio Dom João Becker foi um dos polos aglutinadores dessa ebulição sociocultural. No período da ditadura, através do seu Grêmio Estudantil, em alguns momentos foi centro irradiador de um ideário de esquerda, e da luta pela redemocratização do país. Como síntese, é eloquente a fala de uma entrevistada, também se referindo a um olhar de fora: "Como dizia um professor de Artes: lá no IAPI tem um quê de cultura e arte".
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