Mortalha de Cinzas
(Debora Brauner)
Eu era apenas uma garota, uma tola garota sorrindo enquanto desfilava sua roupa
nova naquela bela tarde de domingo, em que o canto dos pássaros parecia ressoar
por toda Niterói.
Era 1961, e essa seria a primeira vez que saíamos à luz do dia juntos, eu
estava radiante de alegria, era como um sonho se tornando realidade - Martin e
eu caminhando pelas ruas como um casal.
Nós nos sentamos em uma das primeiras fileiras, o que era um luxo, já que
veríamos os elefantes e todos os artistas do Gran Circo Norte-Americano
o mais perto possível de nós.
O espetáculo foi incrível, as cores, as vozes, os gestos... Os risos da
plateia... Teria sido um dos melhores momentos da minha vida, por tudo o que
significava para mim. Mas infelizmente aquele momento incrível, tornou-se o
pior dia de minha vida.
Martin e eu havíamos nos retirado da tenda do circo e estávamos do lado de fora
tomando um refresco enquanto o show dos trapezistas se iniciava, eu queria
permanecer lá dentro, mas ele insistiu para que saíssemos para tomar um ar.
Ele me trouxe um cachorro quente e ficou me olhando enquanto eu dava a primeira
mordida e, por Deus, eu quase parto os dentes e ele ri, enquanto me observa
tirar de dentro da boca uma aliança, um pequeno objeto que, para mim,
representava todo um futuro. Foi nesse instante que ela apareceu...
Suas roupas eram de um vermelho intenso, seus olhos verdes brilhavam em faíscas
e em seus lábios, um sorriso sardônico se desenrolava. Eu nunca havia visto-a
antes, mas ela me fitava como se me conhecesse há anos e eu fosse sua pior
inimiga. Sua presença era tão densa e carregada de negatividade que toda a
minha euforia e entusiasmo evaporaram, tudo o que eu sentia vindo dela era uma
maldade gigantesca da qual eu queria distancia. Ela passou por nós olhando-me
com uma fúria até então desconhecida por mim e foi se encontrar com um homem,
aparentemente funcionário do circo.
Martim
também se perturbou e se levantou rapidamente, me pegou pela mão e conduziu-me
de volta para dentro do circo. Sentamo-nos em nossos lugares novamente, mas o
clima de alegria e cumplicidade calma se perdera. A trapezista ia se despedindo
do publico, sendo aclamada pelos aplausos estrondosos que tanto merecia. Foi
quando ouvi gritos histéricos surgindo por todo canto e o cheiro de queimado
começou a se espalhar pelo local. Eu não podia ver de onde vinha o fogo, tudo
que eu sentia era a mão de Martin agarrando em meu braço e tentando me levar
pela maré de corpos que se espremiam rumo à saída.
Em questão de minutos o fogo se alastrou queimando tudo em que tocava. Era
assustador, gritos de desespero, pessoas morriam por toda parte, queimadas ou
pisoteadas, era o inferno na terra. Se Martin não tivesse me segurado e guiado
pela mão para fora de nossos lugares, eu também seria um monte de cinzas e
ossos hoje. Mas ele me salvou, guiando-me pelo meio dos corpos que se
acotovelavam.
Eu queria mais do que tudo fechar meus olhos e sumir da cena horrível e
apavorante que se desenrolava diante de meus olhos e permaneceria gravada e
vívida em todos os meus pesadelos até o fim dos meus dias. Mas Martin parecia
determinado a me salvar e continuava tentando nos tirar de lá. Eu o segurava
como quem se prende a uma corda na beira de um precipício, era ele quem me
mantinha sã, pois as cenas que eu via desenrolarem-se diante de meus olhos eram
assombrosamente terríveis.
Martin de repente soltou minha mão, perdera-se na fumaça densa e negra que se
estabelecera por toda parte. Eu gritava enquanto tentava descobrir o que o
levara de mim, porém não enxergava um palmo a minha frente.
Eu corri como nunca antes havia feito, certa de que esse pesadelo terrível
teria um fim, trombando com pessoas e rostos dos quais jamais me esqueceria. Em
meus pesadelos, eu revejo cada cena daquele dia que infelizmente não foi um
mero sonho ruim, foi real, aquela tragédia realmente acontecera.
Depois
daquele dia eu me agarrei a vida com uma fome que não podia ser liquidada, uma
fome de vida que somente quem sentiu o hálito pútrido da morte pode sentir.
Eu nunca mais vi Martin, seu corpo, assim como tantos outros, jamais foi encontrado,
em meu pescoço eu ainda guardo a aliança que ele me deu naquele dia e que,
naquele momento pareceu uma sólida garantia de um futuro juntos. Eu não podia
estar mais errada, pois nesse mundo, para nós, frágeis humanos, não existem
garantias. E isso ficou mais do que provado anos atrás, no que até hoje é
conhecido como um dos maiores desastres circenses do mundo, ao qual eu
sobrevivi... Ao menos meu corpo, pois minha alma nunca mais seria a mesma
depois daquele dia, em que testemunhei as chamas indecentes e cruéis lamberem
toda uma geração.
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