A Maioria das Pessoas Vive na China
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Sinopse e comentário. Fantasiosa parábola política em episódios
associados aos partidos que disputam as eleições parlamentares norueguesas.
Ligando os episódios está o posto de gasolina de Lasse, cujo sonho de construir
um avião o impede de perceber o interesse que desperta na funcionária dos
Correios. Assim, no primeiro episódio, O
homem de terno, dedicado ao partido de Direita, um pai de família estaciona
à beira de um lago para dar um mergulho e, ao retornar, nu, vê que não apenas
suas roupas, mas sua esposa, seu filho e seu carro desapareceram. Na surreal
história, vê-se a crítica à falta de comunicação nos diálogos dentro do carro.
Quando se falam, pai e mãe (o filho nada diz) parecem utilizar idiomas
diferentes. O hilariante final mostra a completa irrelevância do pai como
indivíduo.
Em Pátria, voltado ao partido de Centro, uma mulher pára o carro na
estrada e tem o celular devorado por uma vaca. Agora precisa encontrá-lo no
meio de um rebanho, seguindo-a pelo toque do aparelho em seu estômago. Outra
situação absurda com final inesperado, sugerindo a capacidade da protagonista
(e do partido) para se adaptar conforme a situação.
Amor sem limite é dedicado ao Partido Popular Cristão, e mostra um
casal de lésbicas que recolhem uma criança romena, que acaba de desaparecer
durante uma parada no posto de gasolina. Neste, o surrealismo é substituído de
forma provocadora e delicada pela questão do casamento homossexual e da adoção
de uma criança por duas mães.
O partido de Esquerda é
representado em A microempresa: um
homem, após brigar com a esposa que comprou biscoitos do estabelecimento
concorrente, conhece um grupo de mulheres cujo carro acabou de quebrar. Abordagem
divertida da questão da concorrência, sugerindo através dos diálogos
desencontrados (uma das mulheres do carro recebe equivocadamente, por exemplo,
como conselhos íntimos a frase “O motor não funciona sem o óleo que passa pelo
canal de lubrificação”) que pensamentos diferentes podem chegar ao mesmo
resultado.
O Partido Progressista é
representado em Cuidar das crianças,
onde duas crianças, sendo uma delas cega, vendem uma rifa aos passantes. O
dinheiro arrecadado, que seria dedicado às crianças da África, é todo gasto com
doces e gasolina para o pai de ambas, que está aniversariando. No discurso da
menina para Lasse (é dela a frase que dá título ao filme), vê-se uma desconcertante sinceridade movida por discutível
senso de lógica, para justificar a mentira da rifa.
Poder Pokémon representa a Aliança Vermelha; nele, um jovem
arrogante e preconceituoso entra com o irmão abobado no posto de gasolina e, na
incapacidade de seduzir a atendente, passa a tentar humilhá-la.
Passageiros é a representação da Esquerda Socialista, em que, numa
noite de chuva, um médico sozinho no carro mantém diálogos imaginários com ele
mesmo durante a adolescência. Único episódio noturno, mostra um protagonista
perdido em sua própria história, necessitando reencontrar-se com seu passado
para se redescobrir.
Por último, Melhor ir primeiro representa os Trabalhistas através de um grupo
de velhinhos que, durante um acampamento, decidem ajudar uma bela jovem que
atolou-se na lama e não consegue sair. Apesar da associação óbvia do atolamento
no lamaçal e da vagareza na comunicação entre os velhinhos, trata-se de
delicioso episódio, cuja previsibilidade do final nada subtrai de seu charme e
ironia.
Com nove pessoas assinando a
direção (Thomas Robsahm, Martin Asphaug, Arild Fröhlich, Sara Johnsen, Magnus
Martens, Hans Petter Molland, Terje Rangnes, Ingebjørg Torgersen, Morten Tyldum)
e sete o roteiro, A Maioria das Pessoas
Vive na China (Folk flest bor i Kina,
Noruega, 2002) poderia padecer do mesmo mal de outros filmes em episódios: a irregularidade.
Para felicidade de quem o assiste, no entanto, as situações são tão imaginosas,
e tão bem interpretadas e dirigidas, que os momentos de menor brilho são
facilmente relevados. Já na deliciosa abertura, em que as imagens aéreas,
fundindo-se com o modelo do avião de Lasse, são emolduradas por aconchegante
música de John Erik Kaada (que permanecemos cantarolando depois do filme), percebe-se estar diante de algo diferente. E bom.
Personagens construídos com mãos sensíveis esbanjam humanidade nas situações
mais absurdas. O humor é geralmente obtido através da surpresa, e não são
poucas as vezes que o espectador se flagra sorrindo, envolvido, conquistado,
para a tela.
Provavelmente aquele que está a par da situação
política da Noruega apreciará melhor as ironias do roteiro. Mas os leigos, como
este missivista, podem ficar despreocupados. Mais do que a política partidária,
pontual, regional, fechada, a câmera das nove pessoas de sobrenome difícil
preferem apontar para o íntimo e, por isso mesmo, universal, do indivíduo. Como
pequenas e inspiradas crônicas, buscam e encontram a beleza através da leveza,
com um olhar que retira do estranho e do incomum a matéria prima para a sua
curiosidade e o seu encantamento. A lastimar, só o fato de não se poder
assistir no cinema um filme como este.
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