Louco para ser normal
(Adam Phillips)
" Quando a imprensa relatou em 2003 que “um tribunal de apelação norte-americano determinou que um condenado à morte recebesse tratamento compulsório para psicose que o tornasse são* o su? ciente para ser executado” (Guardian, 2 de novembro), ninguém que leu a notícia deve ter ? cado muito confuso quanto ao seu signi? cado. Charles Singleton, continuava a notícia, “que matou um balconista a punhaladas em 1979, acredita que sua cela está tomada por demônios, que um médico da prisão implantou um aparelho em seu ouvido e que ele é ao mesmo tempo Deus e a Suprema Corte”.“São o su? ciente para ser executado” signi? cava presumivelmente, nesse contexto, su? cientemente consciente, su? cientemente responsável, su? cientemente culpado para experimentar a punição como punição e não como alguma outra coisa; se Singleton de fato acredita que é Deus e a Suprema Corte, poderia pensar, por exemplo, que tomara a justiça em suas próprias mãos, que se redimira. Se o tratamento fosse e? caz, sua sanidade se re? etiria num maior contato com a realidade consensual; numa capacidade de reconhecer tanto o seu ato quanto que este era passível de punição. Num caso tão extremo, a loucura a que se faz * Ao longo do livro, “são” e “sanidade” estarão traduzindo respectivamente sane e sanity — ou seja, a não ser que o contexto sugira claramente outra coisa, devem ser compreendidos como “mentalmente são” e “sanidade mental”. (N.T.)Prefácio10 Louco para ser normalreferência — “Singleton foi diagnosticado como esquizofrênico paranóide em 1983” — parece tão pouco controversa quanto a sanidade aludida. No entanto, a expressão “são o su? ciente para ser executado” serve para nos lembrar justamente o que poderíamos perder se a palavra “sanidade” não ? zesse mais sentido para nós. Ela conjuga, à sua maneira furtiva, um vasto número de preferências e pressupostos geralmente tácitos, de preconceitos e ideais acerca do que pensamos que deveríamos ser, ou deveríamos parecer quando estamos em nossa melhor forma. Ao mesmo tempo ela nos assegura, também, que há um “nós” que existe em virtude de seu compromisso com esse valor (“nós” sabemos o que a expressão “são o su? ciente para ser executado” deve signi? car): que nós podemos ser agentes de intenções e motivos que podem ser compreendidos por outros e por nós mesmos; que podemos ser responsáveis por nossas ações e suas conseqüências (muitas vezes imprevisíveis); que podemos consentir em ser governados por certas leis, normas e regulamentos; que podemos ser realistas com relação a nossas necessidades e atendê-las sem prejudicar muito os outros. Esse poderia ser o tipo de sanidade de que Singleton precisa para ser executado apropriadamente. Mas é raro, como veremos, que a sanidade seja de? nida; o mais das vezes ela é mencionada sem que jamais seu signi? cado seja explicitado. Charles Singleton pode ser “psicótico”, um “esquizofrênico paranóide”, mas o que signi? caria realmente ele ser são o su? ciente para ser executado? O que é, em essência, sanidade?Palavra com poucos sinônimos, “sanidade” sempre foi um termo fora de moda que nunca saiu inteiramente de moda. Utilizado pela primeira vez por médicos no século XVII para se referir à “saúde do corpo e da mente”, sua conotação moderna mais familiar, como o oposto ou o antídoto da loucura, só se desenvolveu realmente, como veremos, no século XIX. Foi uma palavra adotada pelos novos médicos e higienistas da mente, mas nunca sistematicamente estudada ou de? nida. Ainda que as pessoas nunca tenham reunido exemplos dela, nem submetido-a a pesquisas Prefácio 11cientí? cas ou a encontrado em países estrangeiros; ainda que raramente tenha sido descrita, diferentemente da loucura, com algum entusiasmo ou devoção, e, como palavra, raramente tenha sido (ou seja) encontrada em poemas, títulos, provérbios, anúncios ou piadas; ainda que seja uma palavra com praticamente nenhuma credibilidade cientí? ca e de pouco uso literário, ela se tornou um termo necessário. Para que exatamente foi necessária — e de fato para o que talvez venha a ser necessária no futuro — é o tema deste livro."
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