Estorvo (Chico Buarque de Holanda)
(Marcelo Coelho)
É um belo livro, esse Estorvo de Chico Buarque. Como o
título sugere, está longe de ser uma leitura fácil. Muito bem escrito, palavra
por palavra, exige uma atenção constante do leitor.
O que impressiona, antes de tudo, é a extrema precisão da
linguagem. Não há descrição que não seja exata, perfeita, acabada em si mesma;
para isto não basta "escrever bem"; é preciso uma acuidade
intelectual, um poder de observação, que Chico Buarque revela ter à maravilha.
Alguns exemplos: De noite, no sítio, o narrador ouve música:
esta ocupa todos os espaços, "com a substância que a música no escuro
tem". Ou está na praia, e vê o mar "vomitando o mar". Uma vaca
pisca devagarinho: "sua pálpebra de quando em quando lambe o olho".
Esse uso impróprio e feliz dos verbos ("vomita", "lambe"),
salvo engano, é uma figura de linguagem que atende pelo nome de catacrese, e
aparece em quase todos os pontos do livro, com efeitos excelentes.
Outra coisa especialmente bem-sucedida é o emprego de termos
coloquiais. De certo modo, a coloquialidade é algo a ser reinventado de tempos
em tempos; exige a atenção para novas formas de falar, para palavras que,
inconscientemente, o autor expulsa de seu vocabulário quando escreve. Chico
Buarque não. Assim, uma menina está ouvindo seu walkman e, de repente, diz o
narrador, "aperta o stop". Veja-se a exatidão desta cena: "um
grupo de moças que saem da dança se abanando, soprando o decote de suas blusas
pretas". Neste caso, é tanto a visão límpida das coisas - o realismo,
afinal - quanto a precisão do vocabulário que nos revela a presença de um
escritor que conhece seu ofício.
Voltando a Estorvo. O narrador é de boa família, sua irmã
mora num condomínio de milionários cercado de seguranças. Mas ele não tem eira
nem beira: a boêmia da batucada e da cerveja cede lugar, aqui, a uma solidão
completa. O narrador simplesmente não sabe para onde ir, o sítio de sua família
está ocupado por traficantes, enquanto o "povo" se entrega de corpo e
alma à criminalidade, à estupidez ou ao silêncio. A aliança entre a elite e a
classe baixa, pelo samba e pela utopia, se mostra impossível. O mundo do
narrador é estranho, deformado - os raros nomes próprios que aparecem no livro,
como Azéa, Osbênio, Clauir, são caricaturas tensas da brasilidade popular.
Chico Buarque trata de um mundo de traficantes e cartões de
crédito, de cercas eletrificadas, de seguranças e relógios digitais, onde a
defesa exacerbada da propriedade individual terminou afastando de si outra
característica burguesa, a da liberdade da pessoa enclausurada, esta, com medo
de assaltos e sequestros. Um "boêmio", como é o narrador, não
encontra lugar nessa sociedade; vive um exílio que é aqui mesmo. Uma fuga
interminável, estranha, irreal, compõe o romance.
Mas é um romance? Dizem que não. Seria diferente, por
exemplo, se o livro contasse a evolução da personagem principal até o ponto
lamentável em que o encontramos no começo da narrativa. Não há uma
"transformação" desse tipo. O tempo da narração é sempre o presente -
"abro a porta", "vejo o fulano", etc., o que aliás dá um
tom cansativo à coisa.
Daí a impressão de que o tempo presente na narrativa de
Estorvo parece contrastar com a vontade de escrever um romance; o pretérito e o
condicional se recusam a aparecer neste livro.
Difícil escrever um romance numa situação política e
psicológica em que cada coisa parece se esgotar em si mesma. As cenas do livro
também se esgotam, param nelas mesmas; a vantagem é que há um excelente
escritor por trás de tudo.
Resumos Relacionados
- Budapeste
- Carlos Susseking - Vida E Obra
- Livros E Vídeos Sobre The Doors E Jim Morrison
- Amor De Capitu
- Mãe Pátrio Poder
|
|