Leite Derramado (Chico Buarque)
(Leyla Perrone-Moisés)
Um homem muito velho está num leito de hospital e desfia,
num monólogo dirigido à filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história
de sua linhagem desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do
Império, um senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de
Janeiro atual. Uma saga familiar caracterizada pela decadência social e
econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos.
A primeira originalidade deste livro, com relação ao gênero,
é sua brevidade. As sagas familiares são geralmente espraiadas em vários
volumes; aqui, ela se concentra em 200 páginas. Outra originalidade é sua
estrutura narrativa. A ordem cronológica é embaralhada, por se tratar de uma
memória repetitiva mas contraditória, obsessiva, mas esburacada.
O texto é construído de maneira primorosa. A fala
desarticulada do ancião, ao mesmo tempo que preenche uma função de
verossimilhança, cria dúvidas e suspenses que prendem o leitor. O discurso da
personagem parece espontâneo, mas o escritor domina com mão firme as
associações livres, as falsidades e os não-ditos, de modo que o leitor pode ler
nas entrelinhas, partilhando a ironia do autor, verdades que a personagem não
consegue enfrentar. Tudo, neste texto, é conciso e preciso. Como num
quebra-cabeça bem concebido, nenhum elemento é supérfluo.
Há também um jogo com os espaços onde ocorrem os
acontecimentos narrados. As várias casas em que o narrador morou, como as
décadas acumuladas em suas lembranças, se sobrepõem e se revezam. Recolocá-las
em ordem cronológica é assistir a uma derrocada pessoal e coletiva: o chalé de
Copacabana, “longínquo areal” dos anos 20, é substituído por um apartamento num
edifício construído atrás de seu terreno; esse apartamento é trocado por outro,
menor, na Tijuca; o palacete familiar de Botafogo, vendido, torna-se
estacionamento de embaixada; a fazenda da infância, na “raiz da serra”,
transforma-se em favela, com um barulhento templo evangélico no local da velha
igreja outrora consagrada pelo bispo. Embaixo da última morada do narrador,
nesse “endereço de gente desclassificada”, está o antigo cemitério onde jaz seu
avô.
Percorre todo o texto, como um baixo contínuo, a paixão mal
vivida e mal compreendida do narrador por uma mulher. Os múltiplos traços de
Matilde, seu “olhar em pingue-pongue”, suas corridas a cavalo ou na praia, suas
danças, seus vestidos espalhafatosos, ao mesmo tempo que determinam a paixão do
marido e impregnam indelevelmente sua lembrança, ocasionam a infelicidade de
ambos. Os preconceitos e o ciúme doentio do homem barram a realização plena da
mulher e levam-na a um triste fim.
O fato de nem no fim da vida o homem compreender e aceitar o
que aconteceu torna seu drama ainda mais lamentável. Os enganos ocasionados por
seu ciúme são tragicômicos, e o escritor os expõe com uma acuidade psicológica
que podemos, sem exagero, qualificar de proustiana.
Outras figuras, fixadas a partir de mínimos traços, também
se sustentam como personagens consistentes: o arrogante engenheiro francês
Dubosc, que a tudo reage com um “merde alors”; a mãe do narrador, que, de tão
reprimida e repressora, “toca” piano sem emitir nenhum som; a namorada do
garotão com seus piercings e gírias. É espantoso como tantas personagens
conseguem vida própria em tão pouco espaço textual. Leite derramado é obra de
um escritor em plena posse de seu talento e de sua linguagem.
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