A Entrega
(Toni Bentley)
Há várias descrições presentes nas narrativas de todos os povos e épocas sobre as formas pelas quais homens e mulheres considerados iluminados atingiram a espiritualidade, contataram o divino, estiveram na presença de Deus - seja lá qual expressão se prefira usar para descrever o que os anglófonos chamam de epiphany, ou seja, o momento único em que o homem tem a oportunidade de suplantar sua existência meramente material e contatar, com um grau maior de transcendência e compreensão, algo do que se passa além das barreiras do mundo de ilusões de que nos falam os budistas, do nosso mundo de carne, osso e matéria bruta. Nenhuma dessas epifanias, contudo, por mais bizarras e inacreditáveis que possam parecer a este ou aquele leitor mais incrédulo, encontra comparação com o que nos narra Toni Bentley, ex-bailarina norte-americana, em seu recém- lançado livro autobiográfico The Surrender (em inglês, A Submissão, mas que a editora brasileira preferiu traduzir como A Entrega - Memórias Eróticas). A autora descreve no livro, entre outros tantos temas, sua experiência com o divino, seu encontro com Deus, seu momento maior de elevação, o qual teria sido atingido pela prática do sexo anal. Sim - preciso repetir isso sob pena de que passe despercebido -, o sexo anal teria sido seu caminho para encontrar sua espiritualidade - e, para não soar como puritano ou reacionário, prefiro aqui reproduzir suas palavras, para que o leitor faça seu próprio julgamento: "minha transformação não foi de baixo para cima, mas de baixo para baixo: de minha desprezível submissão emocional à abençoada submissão sexual". Para Toni, que no livro declara ter sido sodomizada duzentas e noventa e oito vezes (sic!), a revelação que mudaria sua vida espiritual veio de um caso que teve com um parceiro que chamou no livro de Homem-A, o qual teria apresentado a ela os "portais do paraíso" após inúmeras sessões de sexo convencional e algumas experiências de sexo a três. Nas palavras da autora, sua epifania "foi um milagre emocional e anatômico", que ela considerou surpreendente e revelador ao dizer que "se [ela] tivesse andado sobre a água não poderia ter ficado mais maravilhada". A crítica modernosa estadunidense, como era de se esperar, incensou o livro de Toni como uma obra-prima revolucionária. A "revelação" da ex-bailarina, contudo, não é mais que uma conseqüência risível do que os intelectuais contemporâneos andam a idolatrar desde os anos 1960: o poder do sexo como instrumento de libertação. Para as feministas mais ferrenhas, em verdade, o sexo sempre foi visto apenas através do prisma da repressão - e em um mundo que luta contra as tiranias, o rompimento com os regramentos que existiam na sexualidade humana então foram vistos como um caminho certo para a paz e a sociedade perfeita. Mas Camille Paglia, socióloga estadunidense, já denunciou em seu livro "Sex and Violence, Or Nature and Art" esta falácia feminista ao dizer que tal movimento "grosseiramente simplificou o problema do sexo quando reduziu-o a uma questão de convenção social: reajustada a sociedade, eliminada a desigualdade sexual, purificados os papéis sexuais, a felicidade e a harmonia reinariam", um conceito que espelha, no fundo, a mesma concepção rousseauniana de que a reforma social era a real maneira de construir o paraíso terrestre, por ver o homem como portador de uma bondade inata. Para Paglia, esta lógica feminista é que as leva a culpar a pornografia pelo aumento de estupros, ou a ver o crime e a violência como resultados únicos de uma vizinhança pobre e um lar destroçado... Na visão da socióloga, a violência e a luxúria são frutos da natureza humana e não de construções sociais. Ao falardessa natureza inata do homem, que não é a bondade mas a barbárie, Paglia leva-nos a pensar nos caminhos aos quais a exaltação ao individualismo e a condenação dos ordenamentos sociais como ferramentas de opressão irão nos levar. A liberação sexual dos anos 1960, se nos trouxe aos contemporâneos o benefício de desatar amarras de hipocrisia e rédeas de dominação que precisavam ser desfeitas, também deixou como herança macabra um esvaziamento das relações amorosas, um esfacelar das estruturas familiares, um crescimento indesejado de fatores que perpetuam a desigualdade - como a desordenada explosão de casos de gravidez na infância e na adolescência, a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis, a busca da satisfação pessoal sobre qualquer outro valor e a aceitação perversa da promiscuidade como fonte da felicidade e razão de viver das pessoas. Para Paglia, a liberação sexual e a liberdade sexual são "ilusões modernas", pois "a integração entre o corpo e a mente é um problema profundo que não será jamais solucionado com sexo casual ou uma expansão dos direitos civis das mulheres", mas com a busca do ser humano pelo que há de essencialmente divino dentro de cada um de nós. Haverá verdadeira liberdade quando se é escravo do sexo sem responsabilidade, do vício sem limites, da individualidade que não respeita o direito alheio? Cabe a cada um buscar o seu melhor caminho para responder às questões ontológicas da vida - sobre nossa origem, nossa razão de ser e nosso destino como seres humanos. E há diversas maneiras de atingir o divino em nós, nossa transcendente ligação com o cosmos. Só é questionável a forma estranha que Bentley quer nos apontar como o rumo de tal procurado nirvana... Parece ser apenas conversa para aumentar a venda de suas memórias eróticas lá no reprimido país dos Quackers.
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