O filósofo Gilbert Simondon, em seu admirável livro O Indivíduo E Sua Gênese Físico-Biológica, retoma um dos mais perplexos problemas da filosofia: O princípio de individuação. De saída ele irá recusar as teses tradicionais que pretendem explicar como, de um ser indeterminado, emerge um indivíduo, teses que se dividem em substancialistas e hilemórficas. A primeira pressupõe uma substância já individuada como partes mínimas que comporiam o indivíduo como um todo, por exemplo, os átomos de Demócrito, as mônadas de Leibnitz e, mais recente, os pontos diagramáticos do estruturalismo. A tese hilemórfica, por sua vez, explica a gênese de um indivíduo como um encaixe de duas entidades ontológicas, a forma e a matéria, entidades não substanciais mas que apresentam, todavia, na espontaneidade da primeira e na passividade da Segunda, as marcas de uma individuação primeira que apenas desloca o problema. Para G. Simondon, a origem de um indivíduo não se encontra em uma substância, em formas ou matérias nem mesmo em relações consolidadas que assumiriam o papel de moldes universais. Por outro lado não haveria também um retorno às teorias religiosas da criação ex nihilo. Na origem ele pensa um ser em estado de metaestabilidade como séries de singularidades não relacionadas e uma virtualidade de relações possíveis configurando um estado entre a ordem e o caos. Este problema da individuação freqüentou durante séculos os manuscritos medievais no rebarbativo estilo dos escolásticos. Os tomistas defendiam a individuação pela matéria, pelas suas características acidentais - matéria signata quantitate, os escotistas a explicava pela forma última, a hecceitas (Esta seria a origem do nosso vocábulo receita: a combinação ou forma última que faz com que os mesmos ingredientes possam resultar em produtos diferentes a depender da combinação).
A intenção deste apontamento não é, entretanto, ser a resenha de um livro tão original - muito menos mapear a história de um problema que atravessa as eras da filosofia, mas somente situar o contexto de um exemplo forjado durante a leitura do livro citado: a individuação de um silogismo no cruzamento casual de enunciados os mais disparatados. O primeiro, um aforismo de Heráclito que diz: os asnos preferem palha ao ouro, tomado neste exemplo como uma premissa maior; o segundo enunciado, uma sentença do lógico inglês Bertrand Russel, a montanha de ouro está na Califórnia, tomada como premissa menor. O silogismo resultante ficaria assim: premissa A + premissa B = os asnos evitam a Califórnia! Extraídos de seus universos de referência, os enunciados perdem o sentido original, a função valorativa no primeiro e a função descritiva no segundo, para compor novos sentidos enunciativos ( função demonstrativa). A individuação, portanto, pressupõe singularidades distintas que mudam completamente de sentido ao compor novos agenciamentos. A questão do indivíduo seria muito menos saber qual a sua origem e sim, qual o sentido que ele adquire nos agenciamentos em que participa. No próximo apontamento usaremos outro exemplo delirante: de como, do acasalamento de um passarinho com um pepino, resulta um ninho cheio de azeitonas...
VOX ASTRONÔMICA, VOX DEO
Anos atrás ? a data não importa para esta faculdade que desconhece o tempo: a memória ? eu vivia em casa dos meus pais e no sótão encalacrava-se o estúdio do meu tio Calazar. Ele era um astrônomo amador e passava noites inteiras observando as estrelas com uma velha luneta japonesa. Costumava ele repetir o enunciado de Pascal: a vastidão desses espaços infinitos me enche o peito de opressão e medo!- todos os dias no almoço com a mesma regularidade e monotonia dos astros em seu noturno pastoreio. Um Sábado, de madrugada, eu retornei de uma festa visivelmente bêbado, abri a geladeira e dentro encontrei um suntuoso pudim coroado de ameixas. ?A doçura infinita deste pudim enche-me o estômago de desejo?, pensei. Ele estava destinado à ceia de Domingo e possuía um sentido mais sagradoque as hóstias insalubres ingeridas pela manhã na igreja. Violar o pudim acarretaria maldições, deserção e desterro. Com a faca na mão eu hesitava: ?Cometo esse crime ou não o cometo? Oh! Deus! Cometo ou não cometo??- Quando então ouvi uma voz vinda do alto a gritar: COMETA, COMETA! ? Imediatamente ataquei o pudim acreditando, bêbado, ter ouvido a tonitruante voz de Deus. Contemplando depois o prato vazio onde, sobre uma calda rala, orbitavam sementes de ameixa, lembrei-me ser esta voz divina o grito do meu tio Calazar rastreando no céu um intempestivo cometa. No outro dia a minha compreensiva mãe salvou-me a pele preparando uma rápida sobremesa mas não me abandonou uma intermitente azia confirmando a velha superstição de serem bastante aziagos estes errantes cometas!
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CASSIANO - contatos com o autor:
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