Notas Gastronômicas De Um Tatu-bola
(Cassiano Ribeiro Santos)
Trata de uma work in progress, um relato confessional de tatu-bola ou tatu-peba, cujos hábitos necrófilos o torna um especialista em sabores, e também um sábio, se aceitarmos uma das etimologias que associa a palavra saber à sabor. A pretensão é criticar os costumes do homem moderno ( O Tempora! O Mores!) de se enpanturrar de comida e cultuar a gastronomia como uma arte sublime! Segue as primeiras linhas: Nasci perto daqui, no antigo cemitério de Rio das Flores. Quando esta cidade foi inundada pelas águas de uma represa eu consegui sobreviver e segui os humanos até o novo cemitério onde vivo agora solitário e obeso como um exilado rei. Foi mesmo muita sorte. Alguém resolveu exumar os restos mortais de algum parente recém- falecido, o levando consigo para enterrá-lo na nova cidade. Eu estava dentro do caixão, mas eles não perceberam o furo na base ( quase sempre entro assim, por baixo, onde a madeira é menos reforçada ). Tenho a cabeça pequena e, talvez por isso, a memória curta, mas, devido ao susto deste episódio, trago gravado comigo as recordações deste que é simbolicamente meu primeiro jantar e chego a pensar que ele tenha determinado para sempre os pendores do meu paladar. Era uma fêmea raquítica e bastante idosa. Sua pele era abundante e se soltava com facilidade feito um crepe suzete, embora o sabor lembrasse mais à panqueca de ovos! Para não ser denunciado pelos movimentos bruscos, aninhei-me entre suas pernas onde os ossos, envoltos por uma nuáge de carne, jaziam sobre uma acolchoada camada dupla de acinzentada pelanca. Não foi preciso completar o trajeto e eu já tinha devorado a pele inteira, encontrando-me então as voltas com um incômodo tufo de pelos grisalhos incrustados em meus dentes afiados. As manchas de uma pele senil possuem um acre sabor apimentado se você conseguir espremê-las e foi por remoer assim as tiras de pele que deixei os pelos se prenderem aos meus dentes. Serei mais cuidadoso da próxima vez, pensei e, mesmo com a boca cheia de cabelos, devorei o que restou daquele par de pernas secas, deixando o resto para depois do novo enterro. Muitos julgam monótono o nosso cardápio sem se darem conta de que o homem é aquilo que ele come. Essa definição, se tomada ao pé-da-letra, expressa a assimilação, nos tecidos humanos, dos alimentos ingeridos que, mesmo reduzidos a suas partes elementares, guardam químicas reminiscências dos seus atributos originais. Quem depura bem o paladar sabe que há carne no pão e leite no mel, que uma omniosa transubstanciação é o segredo alquímico da natureza! Percebi isso quando devorei o abade Dom Marcos Teixeira. Demorei quase cinco semanas até vencer as filigranas envernizadas do seu palácio mortuário. Movia-me embriagado pelo cheiro agridoce de suas carnes que invadiam minhas narinas como a porta de um forno aberta por um menino travesso. As secreções do seu corpo, seus nacarados humores e sua gordurosa linfa há muito escorrera e impregnava a madeira do caixão como uma lambuzada embalagem que lambemos antes de devorar o chocolate ( aliás, em épocas de vacas magras, quando parecia que ninguém mais morreria naquela salutar comunidade, passei mais de uma noite no velho monturo de caixões podres, atrás do ossuário, a roer faminto as lascas de um velho caixão em busca de um naco de gordura, um sebo ressequido, um prego incrustado de sangue e salmoura; de outra feita, enterraram uma jovemzinha aleijada com suas muletas ao seu lado, as quais, feito essas relíquias de santos, absorvera todo o néctar da rapariga em flor...) mas devo deixar tais digressões para um capítulo á parte sobre as madeiras da minha vida! Voltemos ao abade Dom Marcos e a hermenêutica dos alimentos assimilados nos tecidos cadavéricos. O abade morrera de boca aberta ? ou então seu maxilar caíra ao apodrecer algum músculo facial ? e exibia um sorriso de intumescidas e suculentas gengivas: uma de minhas partes preferidas. Devorei extático o licoroso pudim, sugando com avidez as longas e cariadas raízes dos seus dentes quando, ao liberar um displicente arroto, senti, nas fímbrias daquela iguaria, um bouquêt de Veuve Cricquôt, o inconfundível champanhe seco e dourado que Napoleão imortalizou! Maroto! Seu corpo todo escondia esse travo que nunca imaginei encontrar no monástico cardápio da Igreja católica! PARA LER MAIS TEXTOS DESSE AUTOR,€ESSE www.shvoong.com E PESQUISE USANDO A PALAVRA-CHAVE CASSIANO - contatos com o autor: [email protected]
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