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Boca De Ouro
(Nelson Rodrigues)

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Há, na obra de Nelson Rodrigues, duas
fases distintas, embora complementares. Em primeiro lugar, existe a
fase mítica, em que o autor trabalha predominantemente com realidades
arquetípicas, sem qualquer compromisso substancial com o mundo
objetivo. Já na sua segunda fase, balzaquiana, por assim por
dizer, Nelson Rodrigues faz com que seus personagens desçam do Olimpo e
se plantem no chão do mundo, no chão do subúrbio carioca, de onde
passam a brotar com um vigor e uma autenticidade admiráveis. Esta
transição se processa, no entanto, sem prejuízo dos aspectos míticos da
obra, que continuam encravados no coração do teatro de Nelson Rodrigues
e lhe conferem a sua grandeza poética e a sua universalidade. Em
Boca de Ouro, esse casamento entre o particular e o universal, entre o
subúrbio, no que dele tem de mais peculiar, e a simbologia arcaica do
inconsciente, no que esta possui de mais genérico, se faz de maneira
psicológica e artisticamente perfeita. É claro que tal inserção de
planos pode confundir e desorientar a crítica, mesmo avisada e
experiente. Daí, por exemplo, a impressão de "salada", de desunidade,
que um crítico da lucidez e da experiência de Paulo Francis denuncia em
seu contato com a obra. Esta desunidade é, porém, aparente e não
essencial. Ela decorre da perplexidade do espectador ante o encontro
entre o mito e o subúrbio, e das surpresas e desdobramentos que surgem
deste conúbio. Boca de Ouro, sendo um autêntico rei do jogo do bicho,
brasileiríssimo e suburbano, é, ao mesmo tempo, o fulvo felino
imemorial que nos habita a todos, o leão de Judo onipotente que cada um
alimenta nas testas de sua fantasia profunda, todo músculo e toda
força, além da morte, além do risco, além da solidão e do abandono. Nelson
Rodrigues, na estrutura de sua peca, mostra, sem qualquer dúvida , a
sua intenção de universalizar certas realidades inconsciente
fundamentais, que Boca de Ouro representa. Tanto é assim que o
personagem só aparece, como presença autônoma, na primeira cena, no
dentista, quando manda arrancar todos os dentes sadios para
substituí-los por uma dentadura de ouro. Neste gesto o personagem
define, desde logo, com um vigor absoluto, o cerne de seu projeto
existencial. Boca de Ouro escolhe aí o caminho da potência onipotente
da força desmesurada e agressiva através da qual espera agarrar a
invulnerabilidade a que aspira. Os dentes naturais são perecíveis,
envelhecem e morrem. Seu poder de domínio triturador está limitado
pelas travas insuperáveis da condição humana. Boca de Ouro, ao optar
pela dentadura que lhe deu o nome, busca transfigurar-se e
imortalizar-se pelo caminho da agressão primitiva, aquém ou além do bem
e do mal. Nesta medida, coroado rei por si mesmo(corado nos dentes),
sentado no trono de seu despotismo sem limite, o personagem transcende
o subúrbio e se configura como herói da espécie, violento e terrível. Em
virtude desta dimensão mítica é que Boca de Ouro, como ser autônomo,
individual e individuado, já não mais aparece na peça. Ele existirá
pelos olhos dos outros, terá as múltiplas faces que os outros lhe
atribuem, será, além de si próprio, a encarnação das fantasias de
onipotência que os outros, através dele, buscam exprimir. Esta é a
linha psicológica pela qual a peça ganha unidade e profundidade, uma
vez que os personagens: D.Guigui, Agenor, os jornalistas, a comparsaria
que faz fila no necrotério, o locutor de rádio_ ao falar de Boca de
Ouro, falam também de si e, ao criar a sua imagem mítica, se revelam
nos seus sonhos de poder e despotismo. Os demais personagens ligados ao
Boca de Ouro, e trazidos `a cena pela narrativa de D. Guigui ao
repórter, participam deste mesmo, desdobramento de planos psicológicos
e, sendo vivos e autônomos, também representam focos de clarificação
que iluminam o herói da peça e são por ele iluminado, desvendando, por
último, a realidade interna da narradora que os faz viver. Qual
será, por fim, o significado profundo da peça de Nelson Rodrigues, e
que alcance ético poderá ter? A chave da pergunta nos é dada pelo
próprio autor, através da força intuitiva dos símbolos que cria. Boca
de Ouro, nascido de mãe pândega, parido num reservado de gafieira,
tendo perdido o paraíso uterino para defrontar-se com uma realidade
hostil e inóspita, sentiu-se condenado `a condição de excremento. Seu
primeiro berço foi a pia de gafieira, onde a mãe, aberta a torneira, o
abandonou num batismo cruel e pagão. Esta é a situação simbólica pela
qual o autor, com um vigor de mestre, expressa o exílio e a angústia
humana do nascimento, o traumatismo que nos causa, a todos, o fato de
sermos expulsos do Éden e rojados ao mundo, para a aventura do medo, do
risco e da morte. Boca de Ouro, frente a esta angústia existencial
básica, escolheu o caminho da violência e do ressentimento para
superá-la.
Ele, excremento da mãe,
desprezando-se na sua imensa inercidade de rejeitado, incapaz de
curar-se desta ferida inaugural, pretendeu a transmutação das fezes em
ouro, isto é, da sua própria humilhação e fraqueza em força e potência.
Esta alquimia sublimatória ele a quis realizar através da violência, da
embriaguez do poder destrutivo pelo qual chegaria `a condição de deus
pagão, cego no seu furor, belo e inviolável na pujança de sua fúria
desencadeada. Ao útero materno mau, que o expulsou e o lançou na
abjeção, preferiu ele, na sua fantasia onipotente, o caixão de ouro, o
novo útero eterno e incorruptível onde, sem morrer, repousaria. Acabou
mal esse Boca de Ouro, esse belo sinistro, terrível e ingênuo herói,
tão grande e tão miserável na sua revolta contra a condição humana. Ele
que, pela violência homicida, pretendeu realizar o velho sonho da
alquimia, de transmutação dos elementos, transformando-se a si próprio
em ouro imperecível, acabou lançado `a sarjeta, com a cabeça no ralo,
crivado de punhaladas, reduzido `a matéria de que tinha horror. Depois
de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o nosso rei destronado,
devolvido `a sua solidão, fraco e pobre como o mais fraco e mais pobre
dos seres. Nelson Rodrigues, em Boca de Ouro, faz
implicitamente o processo metafísico da violência, da vontade de poder,
e sua lição é construtiva. Ele mostra a impossibilidade do homem de,
pelo furor destrutivo, chegar a salvar-se. O ressentimento, como paixão
existencial, e a raiva cega que dele decorre arrastam o ser humano para
o abismo do aniquilamento da morte. O homem, sem dúvida, traz consigo,
no mais íntimo de sua substância ontológica, a vocação da alquimia, a
sede de transfiguração, o instinto que o leva a tentar a transformação
do barro em ouro. Mas este milagre só se opera na medida em que o homem
se aceita e se ama na sua fragilidade, na argila perecível e
corruptível que ele também é, para além de qualquer ressentimento.
Nesse instante, sem o saber, eis que encontra em suas mãos a pedra
filosofal que o transfigura e lhe abre as portas da luz que não se
apaga.



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