Samuel Beckett, comentando a obra de Marcel Proust, dizia que o pêndulo da vida oscila entre o sofrimento e o tédio; Jean Luc Godard, no final do seu filme cult, A Bout de Souffle (Acossado), comenta uma novela do genial William Faulkner, Palmeiras Selvagens. Nesta novela, preso e condenado, o protagonista afirma que as duas faces do destino são a Dor e o Nada, a dor de recordar o passado feliz ou o nada pelo suicídio prometido. Ele, a personagem do livro, escolhe a Dor, Godard, o Nada. Ao longo dos séculos, esta pungente constatação ressoa nas grandes obras da literatura - em Artaud, Sêneca, Crisipo e tantos outros ? como um vaticínio de profundo teor filosófico. Para estes dois males a natureza providenciou dois bálsamos que, infelizmente, são incompatíveis de tal forma que a presença de um bálsamo é causa do outro mal e vice-versa. Para combater a dor a natureza nos proveu de serenidade. Ela nos permite sentir os agudos golpes da vida apenas nos momentos em que os experimentamos ? haja vista que os aflitos sofrem muito mais com a antecipação dos males futuros, com as marcas de dores passadas, do que com a dor efetiva. Possuímos a serenidade na mesma medida em que somos privados de imaginação. É a pobreza de espírito que mantém adormecidas as imagens de dores ainda não, ou já sentidas. Bem-aventurados seriam os pobres de espírito não fosse a sua mais funesta seqüela, o outro lado do pêndulo, o Tédio. O homem sereno sente a vida como a monótona sucessão das calendas sempre iguais e padece com sua enfadonha repetição. Contra o tédio, a natureza providenciou o engenho, o gênio com sua marca distintiva: a vivacidade do espírito, a Imaginação; com ela, povoamos nossos dias com falsas lembranças paradisíacas, com glórias iminentes, com doces ficções e inventos que no seu grau mais sofisticado se transformam em obras de arte que avivam e inflamam nosso cotidiano. Que o artista seja atormentado por muitas dores se explica pela imaginação exaltada que, nos intervalos da criação, encena e amplifica as dores do seu humano quinhão. Recordo-me de Amadeus Mozart, no filme homônimo de Milos Forman, compondo seu inesquecível Réquiem, sofrendo com o temor da morte e com o fantasma do seu pai há muito então desaparecido. Para concluir, na extremidade do tédio há o silencio fúnebre do niilismo, enquanto na dor, o pêndulo dobra os sinos da arte e do espírito. Quase todos os autores que se defrontam com esta alegoria da vida, não hesitam em escolher a dor como a opção de um heróico estoicismo. Que J. L. Godard, no filme citado, tenha escolhido o Nada, revela, mais do que o seu ingênuo existencialismo, a sua incipiente juventude que o desautorizava, naquela época, a falar com propriedade sobre a vida!
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Durante dezenas de milhares de anos, nossos antepassados tiveram uma curta existência. Quase não se encontra vestígios de anciãos em sítios arqueológicos . Todos morriam entre trinta e quarenta anos, não havendo, portanto nenhuma vantagem seletiva para o desenvolvimento de memórias de longa duração. Supondo que a memória seja um fenômeno exclusivamente cerebral, ela encontraria uma saturação por volta da quinta década de existência; e, de fato, o envelhecimento parece mesmo ser um contínuo processo de esquecimento causado por um cérebro saturado que precisa eliminar velhas lembranças para contrair novas marcas (talvez a função dos sonhos repetitivos seja eliminar este excesso de memória, pois geralmente, depois de sonharmos muitas vezes com as mesmas situações, elas tendem a ser esquecidas para sempre; por isso, na juventude do nosso cérebro, não costumamos ter sonhos repetitivos visto haver ainda um grande potencial para novos registros). Quando um idoso recorda-se da sua infância e juventude, as lembranças costumam ser imprecisas quanto a detalhes, datas e circunstâncias, aspectos estes de natureza pragmática e cronológica que um cérebro entupido não pode mais fornecer com precisão; entretanto, as lembranças dos idosos possuem uma vivacidade que nenhum detalhe cerebral poderia oferecer. Como as ruínas de uma cidade antiga, quanto mais destruídas pelo tempo, mais enfáticas e pitorescas elas passam a ser. A imprecisão das lembranças, suas franjas estioladas são, ao mesmo tempo, as sombras de um cérebro que declina e o esplendor de um espírito que doura suas bordas no ouro do tempo. É preciso que o cérebro seja recalcado por um excesso de lembranças para que se perceba a dimensão espiritual da memória, um pouco como nos velhos catecismos que condicionava ao padecimento do corpo a liberdade da nossa alma!
Um eminente psicólogo explica a frivolidade das crianças pela extrema vivacidade do espírito que, envolvido na dinâmica vertiginosa da vida, é arrastado pelas impressões sensíveis de um para outro fenômeno em uma dança sobre a superfície do mundo; sem a concentração e a reflexão que a pressupõe, ela não apreende a experiência em suas camadas profundas, nem é capaz de escalonar a importância de cada uma delas. Cabe a nós uma questão: Não seria exatamente a ausência de vivacidade no espírito do psicólogo que o leva a julgar frívola a atitude das crianças e considerar relevantes as suas reflexões meditabundas? Talvez, para uma criança, o adejar mirabolante de uma borboleta no jardim ou a sina de um barquinho de papel nas águas da chuva seja algo mais emocionante e profundo do que as extenuadas e abstrusas teorias de um sábio de gabinete!
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