Carta Ao Pai
(Franz Kafka)
Dois noivados fracassados com Felice Bauer, rompidos sem muitas explicações; outro não mais feliz com Julie Wohryzek, com quem realmente desejava contrair matrimônio, mas com quem também não o fez; uma relação bastante ambígua com sua irmã favorita, Ottla; uma carreira literária que ainda não tinha se desenvolvido plenamente (mesmo que ela tenha se mostrado brilhante pouco depois) e a angústia de um emprego insatisfatório de burocrata do governo. Assim era Kafka aos 36 anos.De todas as tortas relações e decepções humanas que Kafka teve, a que mais o abalou foi, seguramente, a relação quase doentia que tinha com seu tirânico pai. Nesta carta de mais de cem páginas, Kafka explicita toda a sua dor; ao menos, tenta. E que tentativa! Nela, Kafka desabafa sobre cada ato vil que o "deus" (como Kafka se referiu a seu pai, Hermann, entre outras coisas, tirano, rei, regente) lhe reservava e que tanto o incomodava. É correto afirmar que jamais foram realmente pai e filho, pois sempre mantiveram um clima de disputa, graças ao espírito ditador de Kafka pai, que sempre viu no filho uma espécie de inimigo, mas um inimigo inferior, indigno de uma batalha. A carta foi escrita com o intuito de trazer um pouco de paz a ambos, como o próprio autor disse: "Essa tua maneira de ver as coisas eu só considero certa na medida em que mesmo eu acredito que não tenhas a menor culpa em nosso alheamento. Mas também eu não tenho a menor culpa. Se eu pudesse te levar a reconhecê-lo, então seria possível, não uma nova vida ? que para isso estamos ambos velhos demais ?, mas o abrandamento de tuas intermináveis acusações." A que acusações ele se referia?Desde criança, Kafka era constantemente ameaçado (tanto pelo seu tamanho físico, quanto pela sua inocência juvenil); já adulto, a situação não era lá muito diferente. Hermann continuava a ter total controle sobre o filho e tanto pior, sempre fez questão de mostrar seu poder a todos, como fica evidente no episódio em que, ao ver o filho voltar de um passeio com Gustav Janouch, um de seus amigos, Hermann disse sem a menor cerimônia e em alto e bom tom: "Franz, para casa. O ar está úmido", ao que o jovem Kafka atendeu sem pestanejar, mas não sem antes confidenciar ao amigo, em voz baixa: "Meu pai. Ele se preocupa comigo. O amor muitas vezes tem o rosto da violência."Franz sempre se sentiu inferiorizado em contraste com seu pai até mesmo pela gritante diferença entre seus portes físicos, como é narrado de forma tocante logo nas primeiras páginas, uma das vezes em que ele, que se dizia, "um pequeno e medroso pacote de ossos" foi à piscina com seu forte, grande e possante pai. E a parte em que ele fala sobre a forma como sempre era puxado para fora da cabine por Hermann, ficando ainda mais envergonhado, é uma das confissões mais verdadeiramente tristes contidas na carta.Seu pai sempre encontrava brechas para humilhá-lo, fosse maltratando seus amigos, a quem sempre se referia utilizando-se de um de seus provérbios favoritos: "Quem dorme com cães acorda com pulgas" ou fosse mostrando uma indiferença incisiva a tudo o que dizia respeito ao filho, o que se pode sintetizar em frases como "Tenho mais com que me preocupar" ou "Dá para comprar alguma coisa com isso?". Por ser tão empático e conhecedor da alma humana, Franz entendia que a suposta uiofobia de que seu pai parecia ter sido acometido era parte de seu modo de educar, seu modo de amar aos filhos, e até mesmo a si próprio. Hermann agia assim, talvez por ter tido uma vida dura e repleta de privações quando jovem, em que precisou trabalhar muito para alcançar estabilidade financeira. Como os filhos (especialmente Franz, que parecia ser seu alvo favorito) jamais tiveram que passar por nenhuma daquelas dificuldades, já que ele sempre lhes deu tudo de que precisavam, os considerava fracos e mesmo inferiores, tanto em força física, quanto em espírito.Kafka afirma que toda a desaprovação de que sempre foi alvo culminou numa personalidade fraca e amedrontada, tornando-o indeciso até mesmo quando sabia o que queria, como declarou numa de suas cartas a Felice: "Só consigo dar conta das atividades praticas mais simples através de grandiosas cenas sentimentais... quando quero ir para a direita, vou primeiro para a esquerda e então ambiciono melancolicamente ir para a direita... O motivo principal parece ser o temor: não preciso sentir medo de ir para a esquerda, pois para lá eu nem queria ir mesmo".O que mais intriga os estudiosos é o porquê de Franz ter desistido de entregá-la a seu pai. Conjeturam-se várias hipóteses, as mais criveis são se Kafka, após tê-la terminado, tivesse passado a duvidar de seu caráter literário e estético; ou se passara a acreditar que a carta de nada resolveria pra acalmar os ânimos; ou ainda, se ela seria lida, já que seu pai, com sua costumeira apatia, provavelmente não se interessaria em fazê-lo. Nunca se soube, mas o que entrou para a História foi este relato pungente e lírico de uma servidão filial atroz; uma prosa suave numa das mais magníficas autobiografias de que já se teve noticia; e uma narrativa emocionante que esclarece várias pendências psicológicas e ainda abre muitas possibilidades ao estudo da mente humana.
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