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Viagem Transcendental
(Cassiano Ribeiro Santos)

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...Estávamos sentados, L., G. e eu, nas primeiras poltronas de um confortável ônibus rodoviário. Conversávamos com a mesma variabilidade de temas com que as nuvens configuravam-se no quadro móvel das vidraças e intercalávamos também, com grandes angulares de um límpido céu azul e paisagens desoladas, a comunhão de um silencio prolongado. Não sabíamos qual era o nosso destino, mas lembro-me de um sentido épico nos envolvendo como a poeira em certos trechos do caminho. Outros passageiros iam abandonando o veículo a cada posto rodoviário e nós rejubilávamos pressentindo um paradisíaco destino reservado somente à três viajantes agora solitários. L. assumira a direção, cantarolava para o futuro luminoso enquanto G., um velho professor e líder do grupo, agonizava nos bancos de trás, manuseando um livro de muitas páginas. A estrada, em linha reta, declinava-se em ângulos secantes e suaves. Com o passar do tempo, a depressão do lugar nos inquietava na proporção dos acelerados movimentos. A pressão atmosférica aumentava sensivelmente. Suávamos todos e a paisagem ia se povoando com uma exuberante floresta tropical: um pântano milhas abaixo do nível do mar, um abrasivo chaco que talvez não constasse nos mapas. No horizonte u?a mancha sobre a estrada aproximava-se. Era um imóvel e gigantesco sapo. O ônibus descontrolado descia vertiginosamente. Nas duas margens da rodovia outros sapos menores, do tamanho de uma vaca, cruzavam o asfalto em monstruosos saltos. Estávamos estarrecidos, mudos e amedrontados. O coaxar ensurdecedor intensificava o calor e a pressão dentro do veículo. Quando, próximo do fabuloso sapo, este saltou sobre nós com facilidade ? exibindo seu ventre pálido, suas macilentas carnes ? eu perdi o controle e acordei em gritos abomináveis, suando sobre o cobertor que me sufocava. No final da tarde, retornando do trabalho para casa, rememorei esse pesadelo e dei-me conta de um esquecido detalhe. O ônibus havia partido de minha cidade natal, Vitória da Conquista, situada no planalto do Sudoeste da Bahia, pelo acesso de uma estrada vicinal entre muitas outras que dali irradiavam-se. Minutos após a partida ? recordei então - o ônibus apresentara um defeito e saltamos para ver o que tinha acontecido. Na parte traseira do veículo, encontramos G., o professor, concentrado em consertar uma peça quebrada do motor. Ele possuía o semblante transtornado; compartilhava comigo o pressentimento de que morreria em breve e por isso, acredito, ele consertava o motor com urgente e imperiosa necessidade. A viagem deveria ser feita a qualquer preço e suas únicas palavras designavam o destino programado: estávamos indo para Buenos Aires. Ao chegar em casa abri o mapa-múndi sobre a escrivaninha do quarto e localizei as duas cidades como pontos extremos de um segmento de reta. Rememorei o nascente e o poente no céu da minha primitiva cidade, deduzi os pontos cardeais e a orientação cartográfica da estrada vicinal onde começara a onírica viagem. Não sem espanto descobri também que o seu prolongamento coincidia com o segmento da reta que tocava o coração da cidade de Buenos Aires. O meu amigo sonhado tinha pressa em consertar o motor do ônibus. Sabia qual era o nosso urgente destino e sabia também, como bom professor, que uma reta era o caminho mais curto entre dois pontos e qual era a estrada ideal entre tantas outras da cidade de origem; eu não sabia nada. Estava dormindo. Nunca antes havia especulado sobre questões cartográficas, nem com os pontos cardeais da minha esquecida cidade. Este conhecimento independente de esquemas experimentais é o que os filósofos chamam de transcendental e a impessoalidade desta intuição, à sombra de uma razão adormecida, aponta para uma dimensão do pensamento que ultrapassa a mente humana e que flutua entre as coisas envolvendo o relevo do mundo e configurando um espelho para o nosso entendimento iluminado!
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