Geléia Geral
(Gilberto Vasconcellos)
Aliás, essa mesma atitude não está ausente do Manifesto pau-brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1924, o qual já continha algumas proposições da futura corrente antropofágica. Em Pau-Brasil, primeiro manifesto do modernismo brasileiro, afora a justaposição dos referidos conteúdos assincrônicos de nossa sociedade, e apesar de escrito numa linguagem antidiscursiva, elíptica, com frases curtas, diretas, sem ligação explícita entre elas (o que lhe confere inequívoca ambigüidade, bem como certa dificuldade de interpretação), pode-se dizer que a descoberta do Brasil - pressuposto tão difundido pelos escritores de 22 - é ainda uma descoberta que se espanta com o 'desacordo' resultante da dinâmica do capitalismo periférico e suas implicações na esfera da 'cultura da dependência'.(4) Sob esse aspecto, há uma afirmação no Manifesto pau-brasil bastante significativa; 'O quadro histórico, uma aberração'. Do espanto em relação aos desajustes da 'geléia geral brasileira, no original achado de Décio Pignatari, decorrem o nonsense, os corrosivos lances humorísticos ou a carência de 'sintetização', conforme intuiu Mário de Andrade num artigo datado de 1925 sobre Pau-Brasil.(5) E, nesse mesmo artigo, cita Mário o 'juízo finíssimo de Manuel Bandeira: 'me parece que estamos ainda observando o Brasil, ainda estamos vivendo o Brasil'. Vale lembrar também o pronunciamento de Martins de Almeida, acompanhante modernista, sobre a corrente Pau-Brasil. Num texto intitulado apenas Pau-Brasil, de 17 de dezembro de 1925, depois de falar da 'burrice nativa dentro de nós', escreve curiosamente que 'um bom mergulho na estupidez não é de todo mau', a fim de revelar uma das vantagens da vertente inaugurada por Oswald de Andrade(6). Na estética tropicalista os resultados do desenvolvimento desigual do capitalismo entre nós recebe um tratamento crítico-jocoso. Para efeito de deboche, mistura-se namorinho de portão com guitarra elétrica, música pop e Carmem Miranda, Iracema e Ipanema, bossa com palhoça, e 'Formiplac com azeite de dendê. Isto tudo através de uma linguagem elíptica, direta e avessa ao discurso retoricante, o qual aliás está comprometido com a tradicional visão alienada do Brasil. Sob este aspecto, o tropicalismo mais uma vez retoma o espírito de 22. Oswald de Andrade também critica a ideologia dominante via linguagem e na linguagem. Por exemplo: o discurso fragmentado e de síntese, típico do Manifesto Pau-Brasil, além de trazer certa influência dos seus congêneres europeus, pode ser visto como o antídoto do comportamento verbalista. Não obstante o empenho descolonizador que se reflete na atitude da 'exportação de poesia', nota-se freqüentemente, junto ao primeiro manifesto do modernismo, a sátira ao bacharelismo, que se observa ora na crítica à cultura desinteressada (alienada da nossa realidade), ora em seu aspecto lingüístico-verborrágico. O repúdio ao ornamento verbal, 'o falar difícil', não resulta simplesmente da exacerbação formalista a que se chegou na época do parnasianismo; é antes uma postura que se insurge contra um traço arraigado em nossa cultura. E que revela um caráter de classe social. Ou seja, constitui, embora indiretamente, uma importante faceta da dominação. Nasce como resultado das enormes desigualdades sociais. Hoje, temos conhecimento da raiz sociológica desse fenômeno: a ausência de um público alfabetizado deu à classe social dominante a oportunidade de exageradamente desenvolver o gosto pela retórica, o culto da personalidade e do doutor, os jogos de espírito sempre encarados numa perspectiva meramente ornamental. Disso Oswald de Andrade tinha consciência, conforme deixou registrado em Ponta de Lança. referindo-se, por exemplo, ao culto ao doutor, assinala: 'Acredito que a diseminação desse qualificativo honorífico é filha de uma compensação surgida pelo nosso analfabetismo'. O que importa então sublinhar é que Oswald de Andrade, tal como a estética tropicalista, além de se insurgir contra o compoou dos ideologemas) da classe social dominante, utiliza-se de outros significantes, aumentando assim o raio de ação crítica. De acordo com a tropicália, a imagem perfeita da realidade brasileira seria a que apresentasse os efeitos grotescos resultantes da dependência estrutural de nossa economia. A partir de tal fundamento histórico emerge a dialética do moderno e do arcaico, onde cada um é visto sob o ângulo do outro. Mas não são apenas explorados os efeitos meramente grotescos dessa situação. Os efeitos trágicos também têm o seu lugar. Em Tropicália, por exemplo, depois de se referir ao 'monumento no planalto central do país', à moderna arquitetura urbana nascida na época eufórica do nacional- desenvolvimentismo, Caetano Veloso toca na ferida do subdesenvolvimento: 'E no joelho uma criança sorridente feia e morta estende a mão'. Através da justaposição dos versos, este tipo de construção poética não apenas registra simultaneamente o moderno e o arcaico, mas mostra também, de maneira viva, os limites da modernização reflexa, típica de país subdesenvolvido. Do ponto de vista sociológico, esse procedimento tropicalista tem sua razão de ser porque a um só tempo, nossa economia, como assinala Antônio Carlos de Brito, 'incorpora traços e comportamentos análogos aos países desenvolvidos, enquanto que por outras dimensões enfatiza alguns dos desajustes mais típicos das economias periféricas'.
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