Odisseu, Odisséia, A Propósito do Centenário de Adorno (Parte 2)
(Lúcio Júnior)
Ulisses e seus homens, enquanto estavam no barco, perdidos em meio ao nevoeiro, queixaram-se da música de Ântifo. Eles ameaçaram jogá-lo ao mar, aparentemente porque ele repetia com muita insistência o mesmo tema na flauta. Diferente do poema homérico, Ulisses disse algo bastante significativo ao gigante: gabou-se de que sua cabeça estava cheia de segredos, todos os segredos do mundo. Em resposta, o ciclope falou que iria cuspir fora a cabeça de Ulisses. Nesta passagem podemos ver, simbolizado, o choque entre o mito e a razão. O que Ulisses tem na cabeça é o esclarecimento, chave para iluminar todo o mundo. A razão quebra com os mitos, é indigesta para eles, por isso Polifemo prefere rejeitar essa cabeça tão inteligente. A música, ausente do poema original, tem um papel fundamental nessa passagem do filme: fez adormecer o gigante, quando dela se utilizou o até então pouco tolerado flautista Ântifo. Sua arte encontrou uma utilidade: o ciclope teve seu olho furado e sua mão cresceu em direção aos olhos do espectador, num lance de metalinguagem. Na versão de Camerini, Ulisses e seus homens fizeram vinho e sapatearam, enquanto Polifemo batia palmas. De tanto beber vinho, o gigante acabou tendo o olho vazado por Ulisses. Nessa passagem podemos dizer que a música foi usada de forma regressiva, no sentido adorniano. Na mais antiga das versões, Polifemo se infantilizou; na mais recente, dormiu ao som da música, ou seja, não escutou, deixou a música como o mero acompanhamento da bebedeira. Assim como Polifemo, estamos às voltas com a música, mas nós não a escutamos. Ela é apenas pano de fundo para nossas outras atividades. Reforçando o papel alienante da música, também Ulisses relatou que parte do feitiço de Circe era encher seus ouvidos com canções. Ainda a respeito da música, pensamos ser necessário discutir o episódio das sereias. As sereias foram, segundo Juan José Saer, mitologicamente importantes pelos seguintes motivos:
Poucas criaturas desfrutaram de tanta posteridade quanto estes monstros femininos – Medusa e as demais Górgonas, Quimera, Cila e Caribdes, etc. – da mitologia greco-romana, mas somente as sereias foram se adaptando aos tempos que corriam para, por fim, graças à colaboração de Hans Christian Andersen (1805-1875), entre outros, representarem o oposto do que eram, ainda que se possa reconhecer que uma parte (secundária) do mito primitivo lhes atribui beleza e fidelidade. (SAER, 20-05-2002)
O episódio das sereias ressoou ainda nos tempos atuais. Citaremos, logo abaixo, a letra, inspirada nesta passagem da Odisséia, de autoria de Eric Clapton e Martin Sharp, e gravada pela banda Cream nos anos 60:
Tales Of Brave Ulysses
You thought the leaden winter would bring you down forever, But you rode upon a steamer to the violence of the sun. And the colors of the sea blind your eyes with trembling mermaids, And you touch the distant beaches with tales of brave Ulysses: How his naked ears were tortured by the sirens sweetly singing, For the sparkling waves are calling you to kiss their white laced lips.
And you see a girl's brown body dancing through the turquoise, And her footprints make you follow where the sky loves the sea. And when your fingers find her, she drowns you in her body, Carving deep blue ripples in the tissues of your mind.
The tiny purple fishes run laughing through your fingers, And you want to take her with you to the hard land of the winter.
Her name is Aphrodite and she rides a crimson shell, And you know you cannot leave her for you touched the distant sands With tales of brave Ulysses; how his naked ears were tortured By the sirens sweetly singing.
The tiny purple fishes run lauging through your fingers, And you want to take her with you to the hard land of the winter.
Trata-se, acima, de uma criação livremente inspirada no episódio. Nela, a figura feminina atrai, mas é também um colo guloso, devorador. E Ulisses teve as orelhas nuas torturadas pelas sereias que cantavam docemente: música essa que produzia a mais traiçoeira promessa de felicidade. Na canção Tales of Brade Ulisses (Contos do Bravo Ulisses), sobeja a ambiguidade entre a viagem no espaço, _ que é a que fez o personagem da epopéia _ e a viagem lisérgica, ou seja, a busca do estado alterado de consciência provocado pelas drogas. A Odisséia, seria, em si, a própria alienação, sob a forma de alucinação e delírio, estado transitório entre a autoconservação e a autodestruição do eu.
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