Bala Perdida em Casa
(Zuenir Ventura)
Ainda bem queestávamos viajando quando ela chegou. Mas não havia dúvida, era nossa primeirabala perdida. Estava lá, meio amassada. Não se sabe de onde veio. Ainda bem quesaímos ilesos. Eu e minha mulher pensamos imediatamente nas duas favelas maispróximas da casa; Cantagalo e Pavão-Pavãozinho. Puro preconceito precoce, poisà distância e a trajetória que ela teria que percorrer para nos fazer aquelavisita, seria impossível para sua humildade. Teria que ser projetado, no mínimode um fuzil, que atravessaria paredes – inclusive a minha. Como escapar dasconjecturas? Imaginei-me ali na janela olhando as pessoas na praia, comocostumo fazer, e ela vindo naquele momento. A sensação é desconfortante. Escreviem 2003, nessa mesma coluna, sobre uma nota indignada convidando para missa de7º dia de uma vítima de bala perdida. Como disse um deles, “foi à forma que seencontrou para protestar contra a morte absurda de mais um inocente”. Consolei-mepor não estar escrevendo meu obituário. È a segunda vez que uma bala perdidatenta encontrar um Ventura. Minha irmã recebeu a inesperada visita no seuapartamento e a viu alvejar o armário. Um vizinho me alertou sobre o show queaconteceu na praia. Havia mais de cem mil pessoas. De acordo com ele, a perdidapode ter sido disparada por algum maluco atirando pro auto e caindo na minhacasa. Bem, de qualquer forma, meu prazer de observar as pessoas na praia sesente prejudicado. Talvez eu demore um pouco pra me encostar na janela. Outalvez não. De acordo com a crítica do N. Y. Times, esquecemos rápido. “Ostrópicos são tranqüilizadores. O sol brilha (...), a garota de Jobim seguepassando e o sangue é esquecido novamente”. Desdém puro, eles derramam muitomais sangue e não tem garota de Ipanema e nem trópicos.
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