Contos de Eva Luna
(Isabel Allende)
Em Contos de Eva Luna , Isabel Allende se supera, fazendo de cada história um mergulho na alma humana. Cheia de enredos inusitados, essa reunião de contos mostra como a vida pode ser absolutamente diversa. Ecoa como um convite para brincarmos com o improvável em nosso próprio destino, não nos deixando afundar num lamaçal de mediocridade e de lugares-comuns. Fica o conto Clarisa como uma amostra do que o livro reserva. Clarisa foi dada em casamento pelos pais ao primeiro homem que a pediu: um juiz de direito que julgaram ser o melhor partido possível para a filha. Com ele teve dois filhos - um casal de crianças, ambas com retardo mental. O nascimento do segundo filho, levou o juiz à loucura e o homem enterrou-se vivo no porão da casa, de onde nunca mais saiu. Viveu muitos anos, abrindo a porta do cubiculo úmido e escuro apenas para pegar a comida que a mulher lhe preparava e colocar fora suas necessidades. Clarisa, ao contrário do marido, não teve sua alegria de vida afetada pela deficiência dos filhos, cuidando sempre das crianças com alegria e desvelo. Tampouco deixou que seu drama pessoal diminuísse o interesse que tinha pelas outras pessoas e o empenho com que se dedicava a ajudá-las -características que aos poucos deram-lhe fama de santa pelas redondezas e também por lugares distantes, tamanha era a tenacidade com que se movimentava para amparar os necessitados e as coisas improváveis que conseguia para beneficiá-los. Clarisa tratava com toda sorte de gente - ladrões, delinqüentes, prostitutas, doentes -, muitas vezes contra a vontade dos próprios beneficiários, que acabavam cedendo por não conseguirem se desembaraçar daquela mulher pequena e tenaz. Por outro lado, ela tinha que superar sua simplicidade e timidez para ir ter com políticos importantes e outras pessoas influentes em prol de suas causas. E, então, lançava-se com êxito em todo tipo de empreitada, as mais inusitadas possíveis. Conseguia, por exemplo, das senhoras católicas, ajuda para as prostitutas do bairro, e dos donos das vinhas, apoio para o grupo de tratamento de alcoólatras. Num desses curiosos empreendimentos, cativou um deputado que seria alvo de muitas solicitações para suas incansáveis ações. Nem os filhos, nem o trabalho extenuante e nem mesmo o marido trancado no porão da casa, impediram que Clarisa engravidasse mais duas vezes, sendo sempre alertada pela parteira do lugar de que poderia novamente dar à luz outras crianças anormais. Clarisa encarou os dois eventos com tranqüilidade, fiada em sua teoria de que para cada desgraça Deus providencia uma graça, para cada dor, uma alegria. E foi mesmo assim que as coisas aconteceram. Ela foi abençoada com dois outros filhos sãos, que se tornariam homens sábios e fortes. Milagrosamente, Clarisa criou os quatro filhos sem a ajuda do marido e, embora vivesse pedindo caridade para os outros, jamais solicitou qualquer coisa para si mesma. Ninguém nunca soube de suas necessidades e de que passava momentos de penúria, às vezes contando apenas com a roupa que tinha no corpo e um pouco de comida na despensa para as quatro crianças. Carregou o fardo dos filhos mais velhos até que um dia, trancados no banheiro, um vazamento de gás levou-os sem sofrimento deste mundo. Clarisa terminou de criar os dois mais novos e, muito tempo depois, quando os viu homens feitos e seguros, decidiu que poderia morrer. Serviu ao marido aquela que seria a última refeição que prepararia para ele, avisando-o de que morreria na sexta-feira seguinte. Chamou os filhos e também avisou que o fim estava próximo. Era difícil acreditar que realmente iria embora, tão saudável era seu aspecto. Apenas haviam-lhe aparecido nos ombros duas inflamações, que as pessoas deram por asas de anjo a brotar nas costas da mulher santa. A notícia de sua despedida fez vir muitos amigos e pessoas a quem ela havia ajudado ou que simplesmente ouviram falar de seus milagres. Clarisa recebeu pessoalmente os mais próximos e soube que a cada instante aumentava a multidão reunida na porta da casa esperando uma bênção sua, uma ajuda qualquer, uma esperança ao menos. Clarisa surpreendia-se com tamanha estima e admiração e confessou à moça que a acompanhara nos últimos anos, quando já se fizera uma mulher idosa e respeitável, de que temia decepcionar toda aquela gente, não podendo levar para Deus as mensagens solicitadas nem fazer intercessões junto a Ele. Não se achava merecedora dos céus e quis confessar um grave pecado. A moça tremeu pensando que talvez Clarisa tivesse, ela própria, matado os filhos que não eram saudáveis. Nesse instante, no entanto, a conversa foi interrompida pela chegada do estimado amigo deputado, que tantas vezes apoiara as causas daquela mulher santa. Ele envelhecera muito mais do que ela e precisou subir as escada da casa apoiado no ombro dos filhos de Clarisa. Foi a última pessoa que Clarisa recebeu e a única com quem quis ficar a sós. Depois disso despediu-se e morreu. O diagnóstico do médico foi de que as inflamações nas costas não eram asas, mas tumores canceríginos, e de que estes é que lhe haviam roubado a vida. O grave pecado, bem, este insinuou-se sutilmente e apenas nos pensamentos da moça que acompanhara Clarisa enquanto ela observava o deputado afastando-se apoiado nos dois rapazes e pôde notar, nesse momento, que os três tinham a mesma constituição forte e as mesmas mãos firmes...
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