RAZÃO E SENTIMENTO
(Gilberto de Melo Kujawski)
Como poderia alguém, como um professor de filosofia, de esquerda, formado nas categorias humanistas do Iluminismo, dizer (mesmo diante de um crime bárbaro como o trucidamento de menino João Hélio, acontecido no Rio de Janeiro, arrastado por quarteirões preso ao cinto de segurança, pelos bandidos que roubaram o carro onde estava) que a pena de morte seria pouco, que os indiciados deveriam passar por torturas medievais, dando vazão por escrito em artigo publicado pela Folha de São Paulo a tudo o que se passa na cabeça do homem comum em face de um crime aberrante. A explicação que ocorre é que o intelectual Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da Universidade de São Paulo, ficou dividido entre sua razão iluminista e o sentimento do homem comum. O sentimento, neste caso, teria falado mais alto. O racionalismo e o intelectualismo concebem a razão como uma esfera separada da vida e suas pulsões, uma esfera autônoma, regida exclusivamente pelas leis da lógica e da matemática. O sentimento, emanação espúria da vida, não pode interferir na marcha da razão. Entretanto, hoje em dia predomina outro critério. O filósofo Husserl introduziu a noção de Lebenswelt – o mundo vital – entendido como o horizonte no qual a razão e a ciência trabalham. Antes de Husserl, o filósofo espanhol Ortega Y Gasset, descobriu a – razão vital – ou seja, a razão ligada indissoluvelmente com a vida. A razão é forma e função da vida e existe para se colocar a seu serviço. Razão e vida não se excluem, compenetram-se. A cabeça bem dotada funciona lado a lado com o coração. O que ocorre é que, se a cabeça é fraca, tudo fracassa. Se a cabeça é forte e sabe ouvir as sutilezas do coração, tudo dá certo. Coração e cabeça são inseparáveis, mas o coração vai sempre na frente, pois ele é que responde pelas nossas opções vitais, que decide afinidades, a música a ouvir, o livro a ser lido. Em suma, a inteligência tem sua fonte no coração, ela se alimenta de raízes pré-intelectuais. Só o coração é clarividente, só ele vê, prevê, provê. O cérebro não passa de seu humilde servo. É isso o que significa o famoso dito de Pascal: O coração tem razões que a razão desconhece. Pode-se tentar organizar a vida como um frio teorema de geometria, mas na hora da execução a intuição fala mais alto do que o calcula racionalista. Os que criticaram Janine pelo seu artigo defendendo a tortura, não devem ter levado em conta seu drama de consciência, seu dilaceramento interior ao pôr em questão todos os valores humanistas de sua formação, a ponto de duvidar de que a humanidade do homem seja uma conquista definitiva. Aferram-se à exigência acadêmica de separar as idéias das convicções e dos sentimentos pessoais, como se isso fosse viável e recomendável. Ai do intelectual incapaz de apaixonar-se ou indignar-se. Será logo subornado por uma ideologia que exalta, pateticamente, os direitos humanos em abstrato enquanto permanece frio e impassível diante do massacre de uma criatura de carne e osso. (resumo Eni Martin)
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