As Relações da Sagrada Família, na Perspectiva Cristã e na Perspectiva de Saramago (1ª parte)
(Artigo de Márcia Elizabeti Machado de Lima)
As Relações da Sagrada Família, na Perspectiva Cristã e na Perspectiva de Saramago, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1ª parte)
Uma das características de José Saramago que vale a pena ser ressaltada é a maneira como valoriza as personagens femininas, em suas obras. Só para exemplificar, lembremos da força de Blimunda, a mulher meio bruxa de Memorial do Convento, que ajudou a construir a passarola com as vontades que colhia das pessoas, ao enxergar-lhes a alma...; a mulher do médico em Ensaio Sobre a Cegueira, a única que não fica cega, e conduz os cegos com força, inteligência e determinação... Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo não é diferente. Insere denúncias de preconceitos sofridos pela mulher em todos os tempos, através de afirmações irônicas. A um leitor ingênuo poderá parecer que o narrador possui postura machista, quando, na verdade, afirma para contestar. Eis alguns exemplos: “Onde cantarem galos não hão-de as galinhas piar, quando muito cacarejem se puseram ovo, assim o tem imposto a boa ordenação do mundo...” (p.55,56). “ Ainda está para nascer o homem que, sem ser por precisões do corpo, se chegue ao lado das mulheres e com elas fique (...) Em tudo, assim me disseram que está escrito na lei, a mulher deverá ao marido respeito e obediência (...)” (p.71). “Melhor fora que a lei perecesse nas chamas do que entregarem-na às mulheres (...)” (p.132).
Feitas as devidas observações a respeito da postura do narrador, passamos ao enfoque nas relações homem/mulher, e principalmente, no que diz respeito à sagrada família, que no livro de Saramago não é formada apenas por José, Maria e Jesus, mas por vários outros filhos. Entendemos ser mais um ingrediente na tentativa de desconstrução do discurso mítico-religioso, no qual é de suma importância que seja negado o fato de Jesus ter tido irmãos, mesmo havendo referência a eles nos Evangelhos: “(...) a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte.” ( p. 15)
Com base nos Evangelhos Apócrifos, Piñero comenta que José, ao se casar com Maria era um viúvo de idade avançada, trazia consigo os filhos do primeiro casamento, os quais Maria adotou e passou a cuidar como se fossem seus, assim como José recebeu a Jesus como se fosse seu filho – “Maria cuidava deles como uma mãe, pois ainda eram muitos pequenos. Esta é a razão pela qual a chamava de “Mãe de Tiago” (e de seus outros irmãos), ainda que não o fosse realmente.”
Sobre o narrador, que afirma para contestar, destacamos esse comentário em que fica clara a intenção de criticar as ideologias contidas no texto bíblico, “(...) há certas coisas que só começaremos a perceber quando nos dispusermos a remontar às fontes.” (.p.57, grifos nossos).
Eis o processo de desnaturalização do discurso institucionalizado, com mostras de seu próprio funcionamento, remontando ao que chama de as fontes, entrelaçando os textos, bíblico e ficcional, como no trecho que antecede o comentário citado acima. “(...) principiando pelos homens, que as mulheres já sabemos que em tudo são secundárias, basta lembrar uma vez mais, e não será a última, que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela (...)” ( p.57).
No texto bíblico, num dado momento da vida de Jesus, quando já havia constituído o seu apostolado e estava a ensinar-lhes por meio de parábolas, ele é avisado de que se encontravam, no meio da multidão, sua mãe e seus irmãos, ao que responde: “(...) minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a executam”. (Lucas, 8:19). A igreja, possivelmente para reforçar a crença no dogma da virgindade de Maria, antes e depois do nascimento de Jesus, diz que a palavra irmãos, na bíblia, refere-se aos parentes em geral, portanto essa passagem não comprovaria que Jesus tivesse irmãos no sentido literal da palavra.
Em Saramago, o que o narrador faz, é justamente, preencher essa lacuna com uma explicação plausível. Através de fatos críveis sobre a rejeição de Jesus à família, camuflada pelo discurso religioso, e que, ao comportar-se assim, Jesus só estaria se colocando como exemplo contra a acepção de pessoas, mostrando que tanto fazia serem parentes ou não, o tratamento deveria ser igual a todos.
Aqui nesse novo Evangelho, a frieza de Jesus em relação à família tem uma causa, ou melhor, várias causas, entre elas, duas mais fortes: a descoberta de Jesus, de que por omissão de José muitas mães perderam os seus filhos; e o descrédito com que a família recebe a notícia de seu primeiro encontro com Deus.
Maria ainda tentou desculpar a José pela omissão frente à crueldade dos soldados de Herodes, alegando que ele “não pensou”, mas o “anjo” que estava ali para julgar, responde: “não, não pensou, e isso não o desculpa”. ( p. 116). Mesmo com a insistência de Maria, ele diz que não é “anjo de perdões” e que não há perdão para o crime de José, sendo até mais fácil o perdão para Herodes. E é pela culpa desse crime que José vai padecer até o fim com o sonho recorrente, de fato um pesadelo: cavalgando em uniforme militar com outros soldados armados de espada, lança e punhal, vai a Belém matar o próprio filho.
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