As Relações da Sagrada Família, na Perspectiva Cristã e na Perspectiva de Saramago (2ª parte)
(artigo de Márcia Elizabeti Machado de Lima)
Em continuidade à abordagem do sonho-pesadelo de José, na obra de Saramago, é o castigo que ele carregará todas as noites. Só será redimido na sua última noite de sono, antes de ser crucificado pelos romanos, pagando por um crime que não cometeu.
Enquanto nas narrativas do texto bíblico canônico José, simplesmente, desaparece sem explicação do que lhe acontece, os Evangelhos Apócrifos registram a sua passagem no dia 26 do mês egípcio epep, que equivale ao nosso 20 de julho do ano 42 do principado de Augusto. Segundo essas fontes, ele morreu de doença, com cerca de cento e onze anos, depois de ter sido avisado por um anjo, deixando Jesus e Maria profundamente tristes. No momento do sepultamento, Jesus deitou-se sobre o corpo de José e chorou por longo tempo, recordando o que o bom homem havia feito por ele desde a fuga para o Egito até o momento presente. Nesses escritos Jesus é referido como o filho adotivo e José o bom velho que cuidou dele e de sua mãe.
Aos poucos o sonho-pesadelo vai ficando conhecido (mas não a sua essência) por toda a família, que crescia admiravelmente, “(...) quase todas as noites gemia e gritava de angústia e pavor, a ponto de fazer acordar as crianças, que por sua vez desatavam a chorar.” ( p. 142). Quanto ao crescimento da família, o narrador “polifônico e multifuncional” _ que no dizer de Vieira (p.383), “é aquele que vê, observa, comenta, interpreta, relata e escreve” _ contribui referindo o aumento da família de José, ao remorso que ambos, ele e Deus, sentem pelas crianças que morreram. “O pátio e a casa do carpinteiro estavam cheios de crianças e era como se estivessem vazios.” ( p. 131,132)
E à conseqüência de gerar e parir os nove filhos, o narrador é bastante irônico em dizer que Maria “murchava de cara e de corpo” (...) e, se os “filhos são a alegria dos pais, Maria fazia tudo para parecer contente (...)” ( p. 130, grifos nossos), já que não lhe era permitido externar o seu sofrimento, nem questionar as suas causas, ficava com a “indignação e a impaciência na alma”.
Finalmente, depois de muito se impacientar com o sonho do pai, o primogênito (Jesus), após interrogar a mãe e não obter resposta satisfatória, no meio de uma lida cotidiana, “em que ajudava ao pai a juntar as partes duma porta”, interroga-o a respeito do sonho-pesadelo, ao que José “sem levantar os olhos”, responde: “(...) O sonho é o pensamento que não foi pensado quando devia, agora o tenho comigo todas as noites, não posso esquecê-lo (...)”, mas o filho é insistente, não quer uma meia resposta, e continua: “E que era o que devias ter pensado (...)” José com determinação e sabedoria acha a saída: “Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso dar-te todas as respostas”. ( p.143). Novamente o narrador dialoga criticamente com o texto bíblico, hipotetizando um possível pensamento de Jesus, quando viesse a saber a verdade, “(...) por que salvou Deus a Isaac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor”. Indignando-se com as injustiças de Deus, completa: “ Quando chegará Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens.” ( p.144).
José morre, Jesus herda do pai a culpa e o sonho-pesadelo, agora invertido, ou conforme Perrone-Moisés (p.241), “Edipianamente, sonha que José vem para matá-lo, e só depois de muito penar se livra (?) da culpa ao identificar-se com o pai, ambos ‘levados no mesmo rio’, em sonho, em direção àquela terceira margem que Guimarães já sonhara.”
O Filho exige da mãe uma explicação, Maria não tem saída – conta-lhe toda a verdade –, ele “(...) lança-se para o chão a chorar, (...) O meu pai matou os meninos de Belém (...)”, Maria tenta apaziguar, ele radicaliza “(...) não me chames teu filho, tu também tens culpa, a minha alma tem uma ferida (...)” O narrador justifica a reação de Jesus, “São assim os juízos da adolescência, radicais (...)”. A revelação se deu fora de casa num descampado debaixo duma oliveira, já observado de longe, pelo Diabo, travestido agora na figura de pastor, conhecedor dessa história desde que se sucedeu, Jesus “(...) de joelhos, gritou, e todo seu corpo lhe ardia como se estivesse a suar sangue, Pai, meu pai, por que me abandonaste (...)”. ( p. 187-189).
Jesus agora carrega a angústia e o desejo de saber quantas foram as crianças assassinadas, “queria saber que quantidade de corpos mortos fora preciso pôr no outro prato para que o fiel da balança declarasse equilibrada a sua vida salva.” Após dois dias anuncia à mãe que deixará o lar, ao que ela escandalizada diz: “(...) Que é isto, que é isto, abandonar um filho primogênito a sua mãe viúva, onde que já se viu (...)” ( p.192). Ele não aceita as contestações da mãe e dos irmãos, precisa ir a Jerusalém desvendar o mistério, visitar as covas dos inocentes. Assim, calçou as sandálias do pai, recolhidas ao pé da cruz, e assumiu o seu destino.
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