BANZEIROS
Quando os barcos a motor passavam pelo rio da minha infância, despejavam fumaça, óleo... e ondas. Faziam-se ondas em sucessão, aproveitadas pela molecada criança, que se jogava nas águas do Itapecuru e deleitava-se em tremenda algazarra com aquele sobe-e-desce líqüido e certo.
A essas ondas sucessivas, movidas a lembranças e a barcos a motor, chama-se banzeiro.
Mas, múltiplos e vários, os “banzeiros” desta boa, bela e bem escrita história de Zeca Tocantins parecem não se referir apenas àquelas ondas de água cheirando a combustível e passado, ou às ondas arrebentadoras e arrebatadoras de amazônicas pororocas e macaréus. Esta é uma história de conflitos humanos, que, qual fieira e cambo, unem peixes diferentes pela guelra e pessoas pela goela. A esses conflitos se chamam também “banzeiros”.
Assim, (d)escrevendo conflitos, Zeca Tocantins, como sensível cirurgião de emoções e letras, vai operando, à base de cortes e costuras, pontos e contrapontos, este pequeno, realístico, regionalista e romântico romance ou conto alongado. Ao final, ver-se-á, o mais tocantino de nossos Zecas produziu uma bela história de amor. Bela e triste, pois banzeira é também a melancolia.
Banzeiros é rico, denso. É momento e documento. Ao sabor das ondas, ou ao repique da caixa. Serve para ler e estudar, sentir e tomografar. Por suas bem traçadas linhas caminham oito personagens e uma variedade de coisas -- “o homem e suas circunstâncias” de Ortega y Gasset. Aliás, a caixa -- aquele instrumento da família do tambor, que, na banda escolar, eu teimava recusar, pois preferia o tarol --, é o seu repique que marca a sucessão de ondas de pensamentos, a correnteza de diálogos subjetivos nesta pequena grande obra do Zeca. Um senhor “achado”, esse do autor, de ir pontuando a história ao som da caixa.
Mas, já disse, ao final pode-se concluir que Banzeiros é uma bela história de amor, melhor, de amores. Os amores putos, prostitutos, do garimpo do Clementino, Nora à frente (afinal, fora “uma das mulheres mais requisitadas”, que se dava ao luxo de escolher os parceiros, independentemente da paga). Os amores de “seu” Cametá, garimpeiro e amante das terras e águas e mulheres do rio Tocantins. (Cametá, na vida real, pai de Zeca, que, como filho-autor, recria e ressuscita o pai hoje pescador de nuvens).
E haja amores em Banzeiros: o amor de Mundica por seu marido Cametá. O amor de Mara por Maroto e, será?, um aludido amor enrustido de Sabará por Mara. Finalmente, o amor de todos pela festa do Divino, onde caixa e cachaça, lamparina de morrão e comida de montão fazem entorno aos diálogos íntimos das personagens -- diálogos mais certeiros que os tiros homicidas de Mumbaca, mais nostálgicos que a solidão interrompida de Zé Mário, mais fortes que o estrondo sempiterno da cachoeira de Santo Antônio “com suas cantigas de medo, com sua garganta de fome, com suas garras de pedra”.
É ler e deliciar-se com a história, com passagens que são pura poesia, como quando descreve a “primeira vez” de Mara ou quando diz que “o rio Tocantins, esse nunca abandonara ninguém, tinha sempre uma boa caldeirada de peixe para quem procurasse suas águas”.
Banzeiros é isso também: uma boa caldeirada -- de peixes, pessoas, pensamentos, conflitos, amores. Com o tempero do mestre boa cuca Zeca Tocantins.
Aos leitores, bom apetite. Ao Zeca, parabéns: seu cardápio literário ganhou mais um prato especial.
Edmilson Sanches - edmilson
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