Linguagem e liberdade a partir de Herder e Kant - I
(Herder; Kant)
1. Origem da linguagem. Proponho uma introdução ao tema, através da exposição do pensamento de Herder sobre a origem da linguagem no homem, a partir da leitura da obra homónima deste filósofo. Kant não se questionou tanto sobre a origem das coisas, preocupando-se e estudando mais sobre a fundamentação das mesmas, enquanto definidas de determinada maneira pelo homem. A obra de Kant é essencialmente crítica sobre os fundamentos, crítica sobre o homem, sobre o seu comportamento na terra. Os primórdios da linguagem humana eram suspiros, gritos, sonoridades semelhantes à linguagem das impressões dos animais não humanos: “Em todas as línguas antigas fazem-se ouvir os vestígios destas sonoridades naturais. E, contudo, é óbvio que tais sonoridades não são as fibras mestras da linguagem humana. Não constituem as verdadeiras raízes, mas a seiva que dá vida às raízes da linguagem.” Tem de entrar aqui um factor de diferenciação entre o homem e os animais, para que surja a linguagem articulada, apenas no homem. Que factor é este? A natureza dotou os animais de sentidos apurados e de instinto. Mas foi parca em recursos naturais que permitissem ao homem uma adaptação segura e estável ao meio ambiente circundante. Há aqui uma aparente lacuna, uma falha grave na distribuição de recursos pela natureza, que, deste modo, “teria sido para o homem a mais cruel das madrastas”. Herder introduz neste ponto uma tese teleológica com que resolve a questão: a lei da compensação. Voltamos assim à natureza mãe, protectora, providente. Afinal, ela dotou o homem de algo que mais nenhum ser sobre a terra possui. Essa compensação é “a especificidade, o carácter do género humano”. Este carácter é a génese da linguagem articulada. A linguagem é, portanto, de origem humana. Não é de origem divina, nem tão pouco de origem natural. A linguagem humana é artificial. A natureza “apenas” dotou o homem de carácter humano. Foi essa especificidade que lhe permitiu alargar a sua esfera de vida até limites infindáveis, criando uma linguagem articulada, expressando a sua liberdade no mundo, e também a sua superioridade modal sobre todos os outros seres vivos. O que é o carácter do género humano? “Usando conceitos mais rigorosos, a racionalidade do homem, o carácter do género humano, é algo de diferente, a saber, a determinação global da sua força para o pensamento na correlação que mantém com a sensibilidade e com as disposições humanas.” Neste ponto Herder critica severamente Kant no que respeita à definição de ‘razão’. Para Herder, Kant considerava a razão humana como uma de um conjunto de faculdades dispersas que, funcionando como que autonomamente, tornavam o conjunto desarticulado e inconsistente. A crítica de Herder é inconsistente. Passo a citar uma passagem da obra de Kant Os progressos da metafísica : “[…] Só assim é que o problema anterior se deixa resolver: importa primeiro considerá-lo na sua relação com as faculdades do homem, pelas quais ele é capaz de estender o seu conhecimento a priori e que nele constituem o que especificamente se pode chamar a sua razão pura.” Para Kant, as faculdades humanas não são entidades dispersas mas, pelo contrário, são partes integrantes de um todo, a razão (ou como diz Herder, “o carácter do género humano”), contribuindo cada uma para o funcionamento pleno do todo, de forma interdisciplinar, constitutiva. O que podemos concluir sobre a origem da linguagem em Herder? Uma questão é essencial: a linguagem vem do interior da alma humana. É uma disposição natural no homem. É esta disposição que o leva a interrogar a natureza circundante e a interrogar-se a si próprio. Estas interrogações são já tentativas de diálogo, primeiro para o interior, de seguida para o exterior. Por mais que a natureza apelasse ao homem para intervir, para se aventurar na senda do conhecimento de si próprio e dos outros, só com esta especificidade, só com um carácter especificamentehumano é que o homem poderia empreender tal aventura. O desenvolvimento da linguagem faz-se assim de dentro para fora. Herder diz que “a língua torna-se assim um órgão natural do entendimento, um sentido da alma humana, comparável à visão […] ou ao instinto […]”. Esta interioridade, este “despertar para” remete-nos para o apriorismo de Kant, que centra no homem a faculdade e a vontade de conhecer (Crítica da Razão Pura): “Compreenderam (os físicos) que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; que ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita”. Assim acabamos este capítulo: com uma razão de ‘necessidade’, também expressa por Herder, no seu ensaio sobre a origem da linguagem: “Estava inventada a linguagem! Inventada naturalmente e nos termos da necessidade humana, tal como no homem é natural e necessário o facto de ser homem!”
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