O dia em que faltou luz.
(Silvan Kraig)
Recordarão os leitores que aquela temporada de tempestades foi atípica. Os padrões deixaram de existir, e a água parecia vir por todos os lados. Não apenas de cima, como é usual, mas, recordemos bem, chovia em todas as direções havidas. A força da água foi tamanha que rebatia no chão e inundava, inclusive, nosss partes mais pudentas.
As águas finas e longas do inverno, trazidas por seu companheiro vento sul, foram substituídas pelos temporais grossos e assustadores do verão, seis meses fora do prazo. No verão os temporais vinham, inundavam, e iam. Temporal de verão fora de prazo foi diferente. Lembram? Sim, muito diferente. Vinham, desabavam, inundavam, e continuavam, um após o outro, muitas vezes impossíveis de separar, de saber onde iniciava um e terminava o anterior. Como a cidade grande e suas periféricas.
Vejam, todos recordaremos que aquilo trouxe muita desgraça. Em regiões, a desgraceira era tamanha, que passados dois anos ainda restava lama sobre os telhados que milagrosamente haviam se mantido em pé, e as marcas da água ainda restavam sobre as paredes sujas. Lógico, aí contribuía de maneira eficaz certa dose de preguiça que se abate sobre certas pessoas pela vida afora.
Bem, quando a chuva chegou a minha cidade, desculpem, não estávamos emancipados na época. Hoje, as cinqüenta e sete casas possuem nome diferenciado, e um perímetro a que chamamos município. Bem, o na época vilarejo foi colhido de surpresa. Claro, todos os anos éramos colhidos de surpresa pelas chuvas pontuais do verão. Naquele ano, fomos colhidos de cueca no inverno. Felizmente não faz frio por lá, mas as torneiras abertas desesperavam mesmo assim.
Em poucas horas estávamos ilhados. Do telhado da minha casa via os compadres e comadres, não todos meus, mas sempre alguém era compadre de outrem, e, se não, certamente comadre. Ficamos horas ali, até que a defesa civil, capitaneada pelo Major, existirá majorada?, Gonçalves (nosso velho conhecido), nos levou para o salão paroquial da capela, na vizinha Miramar. O mar, não, o verdadeiro nem chegava perto de lá, mas ainda assim alguém decidiu batizá-la desta forma. Certamente um marinheiro. Um palpite.
Habituados que estávamos à situação, cada qual trouxe o que pôde. Só não havia comida demais, assim teríamos que esperar uns dois dias, este é o tempo que o pessoal de Brasília precisa pra ir ao mercado e ajudar os pobres, suponho eu. Neste ínterim, com a comida racionada, exceto pela farinha empelotada que abundava, passávamos o tempo olhando o céu cinzento, a chuva interminável, e a extensão de água vale abaixo. Era como se estivéssemos no teto do mundo. Abaixo somente água.
A população, como já disse habituada, divertia-se com a situação, visto que a provação é parte essencial da vida do bom católico. Sem provação não há redenção, nem bilhete garantido para o depois ‘do instante’, que esse nome não se fala nem de brincadeira.
Naquela ocasião achamos que a chuva deveria ter também inundado Brasília, pois a comida dos supermercados de lá ainda não dera as caras. Por sorte, a população mantinha o bom humor; aumentávamos o volume da televisão assim que o casal dava o ‘boa noite’. Fazia-se um silêncio sepulcral, quebrado pela monotonia da chuva, assim que a novela começava. Seria quase possível ouvir a respiração individual, se cada um parasse um pouco para escutar e olhar ao redor.
Acho que ninguém pensou em novela como calmante social. Um tranqüilizante de multidões. Quero crer que não. Acalma, testemunha sou, inclusive a fome.
Lá pelas tantas, a chuva era tamanha no terceiro dia, que a luz nos abandonou. Somos de um lugar onde geradores são sempre necessários, mas todos estavam sob a água. Sim, muito se dizia de mudá-los de posição caso chovesse. Mas, sabe como é, ano vem, ano vai, e o tempo passa sem nos darmos conta.
Bom, a população era pacata. A fome, conforme certificam os ensinamentos bíblicos, faz parte das provações. Não recordo, e, de fato, ninguém recorda, de menção à falta de energia, nem de noite sem novela nas escrituras sagradas. O livro ‘de todos’ não trata de tais questionamentos, que muito faz ele para gerir os demais desmandos do homem.
Nem ao menos havia privacidade, que nas faltas de energia sempre é bem-vinda. Oh, não pensem que precisamos de tanta assim, nos viramos bem com pouco espaço, mas ali havia uma mistura de compadres e comadres, e seus filhos, que se nos atrevêssemos, capaz seria de nascerem crianças sem cabeça e, aposto, nenhum de nós levaria bilhete desta vida para a outra.
O povo, que nestas horas de aperto verdadeiro sabe se juntar para gritar, promoveu um berreiro sem tamanho. Parecíamos um bando de cabritos desamparados. Nem a chuva soava mais. Ouve aquele que ameaçou saltar na água em pleno breu, em sinal de protesto, suponho. Não quereria com tal gesto resgatar um dos geradores, nem chegar a Brasília, que os homens, no aperto, cometem insensatezes dignas de nota.
As autoridades, que logo se aperceberam das coisas, ficaram com medo da revolta. Os técnicos trabalharam duro noite adentro, diante da impaciência da população indignada, confinada como no programa que agora perdiam.
Felizmente, no dia seguinte tudo voltou ao normal, e, ainda lembro, como no intervalo da novela alguém disse:
“Tô com fome, mãe!”
“Menino chato, cala a boca”.
Fim dos comerciais.
“Sssshhhhh”.
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