Linguagem e liberdade a partir de Herder e Kant - III
(Herder; Kant)
3. Linguagem e ética: a linguagem da verdade e a linguagem da mentira. Segundo Herder, “os ídolos de alguns ousados deformadores da verdade, os fantasmas dos zelosos fanáticos e os preconceitos de efeito mais poderoso […] foram também mais prejudiciais ao entendimento humano”. Neste caso, a linguagem tem servido para perpetuar a mentira, através da veneração dos ídolos, “com regras e leis para pensar por analogia com os antepassados e não segundo a natureza, para ler as imagens do universo no espelho deformante da tradição e não na natureza”.
Mas não é preciso renegar totalmente o passado, os sistemas criados pelos filósofos, as lendas que sobreviveram a séculos e séculos de tradição humana sobre a terra. Pelo contrário, é com a ajuda desse passado de verdades e mentiras que o filósofo empreenderá a jornada da “contemplação, observação e designação da natureza, com as ideias distintas de que a linguagem se constitui”. Com a ajuda das “ideias distintas”, o filósofo consegue discernir a verdade da mentira sobre o génio da alma de cada povo.
É interessante observar que o filósofo menciona a linguagem dos sonhos como uma fonte importante de reconhecimento do desejo de perfectibilidade do homem.
Para Herder, a linguagem pode ser manipulada para o mal da humanidade. Mas esta não é uma preocupação fundamental para o filósofo, já que o homem tem uma tendência natural para a perfectibilidade, segundo uma teleologia que o cria à semelhança de Deus.
Herder é, essencialmente, um filósofo que pensa o homem como um ser cultural, enquanto que Kant é um filósofo que pensa o homem como um ser moral. A preocupação de Kant com a ética é uma questão fundamental, abordada ao longo de toda a sua vida filosófica, em várias obras e comunicações.
O que é a mentira? É a transgressão (em liberdade) do dever da veracidade. Importa talvez dizer que Kant distingue verdade de veracidade. É imprescindível à dignidade do homem falar com veracidade. Este é um dado objectivo. Já dizer a verdade é um dado subjectivo, pois existe a minha verdade, que pode colidir com a verdade de outrem, diluindo-se assim o conceito, objectivamente. Kant também dá o exemplo de alguém que está plenamente convencido de que está a dizer a verdade, afirmando no entanto uma mentira. O que importa portanto, é a intenção e esta deve ser sempre, incondicionalmente, dizer com veracidade: “Pode acontecer que nada seja verdadeiro daquilo que um homem tem por tal (pois ele pode errar); mas em tudo o que ele diz, deve ser veraz (ele não deve enganar) …” ( Kant e a ética da linguagem ).
Porque é que o dever de ser veraz é um dever incondicional? Kant responde: por uma questão de dignidade humana, e não só. Também porque a verdade está na base de todos os contratos sociais, e, se ela é omitida ou deturpada, a sociedade cai por terra.
Porque é que o homem mente? Há no homem uma tendência natural para o mal? Kant justifica a existência do mal no homem com uma passagem da Bíblia, que relata que o mal entrou no mundo através de um acto mentiroso. É também recorrendo à religião que o filósofo justifica a necessária existência da veracidade: “Juro, i.é, afirmo tomando Deus por testemunha. Com isso eu não sei se Deus existe; simplesmente assumo na minha consciência que se falto à verdade sou um mentiroso” ( Kant e a ética …). Quanto à segunda pergunta, ela tem uma resposta kantiana, resposta essa que é positiva. Atentemos de novo às palavras de Kant: “Esta fraudulência que consiste em mentir a si próprio, impede-nos a fundação de uma genuína intenção moral e estende-se então também exteriormente à falsidade e ao engano de outros, o que, se não houver de se chamar maldade, merece pelo menos apelidar-se de indignidade, e reside no mal radical da natureza humana; este […] constitui a mancha de corrupção da nossa espécie”.
Estamos perante um beco sem saída, em que se diz que a base de existência da humanidade é a veracidade e em que o que reina é a mentira, a dissimulação e o engano, tendências tão naturais no género humano como a tendência para o bem. A única forma de sair deste beco aparentemente sem saída é fazer triunfar o bem sobre o mal, moralizando o sistema que o homem vem edificando culturalmente, civicamente, tecnologicamente. A resolução é do foro meramente subjectivo, da liberdade de cada um enquanto sujeito moral.
Penso que se pode fazer uma analogia entre o problema kantiano e a questão heraclitiana da unidade dos contrários. Neste caso, a Razão de Kant assemelhar-se-á ao Logos de Heraclito, uma voz que fala ao homem, recomendando-lhe o caminho da unidade, em direcção à verdade, à sabedoria. É como um falar consigo mesmo, distanciando-se ao mesmo tempo de si próprio. O caminho a seguir é o da unidade, que é perpétuo fluir de forças contrárias, entre elas o mal e o bem, a mentira e a verdade, o fenómeno e o númeno.
Será no fim uma espécie de sensatez que ganha a corrida para além da contradição, do conflito? “Deus [é] dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome; mas altera-se tal como o fogo, quando misturado com especiarias, é nomeado de acordo com o aroma de cada uma” (Heraclito).
Este é um tema senão Herderiano, muito Kantiano.
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