Beloved
(Toni Morrison)
O romance Beloved, de Toni Morrison, revisita um período histórico de formação dos Estados Unidos. Morrison parte de um fato real, ocorrido em 1856, em que Margaret Garner, uma escrava foragida, matou sua própria filha, para que esta não retornasse ao cativeiro, quando os perseguidores de escravos estavam prestes a efetuar as suas recapturas. Em Beloved, a família continua ligada à criança morta pela presença de seu espírito na casa e por seu retorno na forma de uma moça. A convivência com essa moça coloca as personagens em conflito com o passado: Sethe, a mãe, Paul D, seu namorado, e Denver, a filha mais nova que continuou a viver com a mãe.[BR][BR]A elaboração da narrativa sobre as vidas de Sethe, Paul D, Denver, Baby Suggs (a avó) é realizada de uma forma não linear, sem pontos fixos de tempo e espaço, com a coexistência de diferentes vozes compostas por fragmentos de memória, histórias vivenciadas em conjunto ou recontadas algum tempo depois. Essas vozes, alternando-se, constroem e reconstroem acontecimentos do passado de forma complementar, mas não conclusiva: há pontos obscuros e incompreensíveis nos fatos e nas trajetórias pessoais. Essas histórias não tomam forma na linguagem de maneira direta e cronológica, isto é, elas rodam em círculos, começando e terminando em diferentes pontos, seguindo, de acordo com Susan Bowers (1997), uma noção temporal pertencente à filosofia africana ocidental dos ciclos dos seres da natureza: "the constant circling of the narrative in Beloved from present to past and back again enacts the West African perspective and reinforces the importance of the past for both the individual and collective psyche" (p.212). [BR][BR]O nascimento de Denver é um exemplo dessa forma narrativa; o acontecimento é descrito muitas vezes, sendo apresentado de perspectivas distintas que reformulam um mesmo fato. A primeira versão é uma lembrança de Denver, pois esta é a história do passado da mãe que ela mais gosta (de como a mãe deu à luz a ela durante sua fuga, com a ajuda de uma desconhecida branca). Depois Sethe conta-o para Paul D, fornecendo novas informações e opiniões pessoais. Denver, mais tarde, narra-o para Beloved, incluindo o máximo de detalhes possível. Há ainda a versão do narrador. De acordo com Pérez-Torres: [BR]Each telling, each version of Denver's birth, shares similar phrases and images: the wild onions into which Sethe falls, the bloody back of the runway slave, the swollen feet, the river birth. No one telling ultimately takes precedence over the next. Each, rather, adds information through the telling. This repetition and variation creates a sense of the story as always having been presented an that one is hearing again a story with which one is already familiar. In this respect, the strategy suggests the quality of orality. The repetition and variation also suggests that there is no authoritative view by which to judge Denver's birth. Despite the potential desire on the part of a sympathetic reader to view the oral elements of Beloved as a privileged discourse, its presence within the narrative serves incessantly to disrupt authority. (1993, p.705) [BR]Em Beloved, a narrativa assume uma estrutura semelhante à da memória: os fatos aparecem de maneira desconexa, ou de forma gradativa, ou em turbilhão. Mas essa não é a única composição formal dessa obra narrativa, que também possui características do discurso oral, tanto nas falas das personagens, quanto na oralidade das histórias que se formam sendo recontadas repetidas vezes durante o romance. Os fatos surgem não como acontecimentos reais em si, mas como lembranças das personagens. E não são lembranças comuns, são eventos revividos que nos mostram o passado por meio da memória. Ora, sem conhecer o passado, podemos apenas olhá-lo por meio dessas lembranças. A narrativa de Beloved não é composta por eventos que acontecem enquanto são narrados; ela é realizada por imagens da memória de diferentes personagens, se juntam para retratar um passado que elas não desejam guardar, mas que não conseguem apagar. Esse movimento da memória, que perpassa todo o romance, é mostrado, por exemplo, na imagem do encadeamento de lembranças de Sethe - sobre o dia em que enterrou a filhinha, sobre conversas com a sogra, sobre a fazenda em que foi escrava: [BR]Baby Suggs rubbed her eyebrows. "My first-born. And all I can remember of her is how she loved the burned bottom of bread. Can you beat that? Eight children and that's all I remember."[BR][BR]"That's all you let yourself remember", Sethe had told her, but she was down to one herself - one alive, that is - the boys chased off by the dead one, and her memory of Burglar was fading fast. Howard at least had a head shape nobody could forget. As for the rest, she worked hard to remember as close to nothing as was safe. Unfortunately her brain was devious. She might be hurrying across a field [...] The picture of the man coming to nurse her was as lifeless as the nerves in her back where the skin buckled like a washboard. [...] And then sopping the chamomile away with pump water and rags, her mind fixed on getting every last bit of sap off [...] Then something. The plash of water, the sight of her shoes and stockings awry on the path where she had flung them; or Here Boy lapping in the puddle near her feet, and suddenly there was Sweet Home rolling, rolling, rolling out before her eyes, and although there was not a leaf on that farm that did not make her want to scream, it rolled itself out before her in shameless beauty. (MORRISON, 1998, p.6) [BR]A elaboração narrativa de Beloved levanta questões relacionadas aos processos de como a História é produzida, como uma nação formada por diferentes povos constitui sua História. A História registrada pela elite branca não consegue dar conta de todas as facetas, embora apresente-se como capaz de reunir e representar todas as vozes presentes na sociedade. Em Beloved, são representadas vozes que, por muito tempo, não tiveram espaço nessa História. O romance expõe que, a exemplo de Denver, todos nós devemos tomar consciência histórica do passado. As Histórias de diferentes partes envolvidas em cada acontecimento têm de ser conhecidas e a História de toda uma sociedade tem de ser a junção dessas (como Paul D sugere à Sethe), uma ao lado da outra, não uma impondo-se sobre a outra. O final da narrativa sugere que: "It was not a story to pass on" (MORRISON, 1998, p.274), e agora deve ser passada adiante para sua própria reavaliação.[BR][BR]Para Linda Hutcheon, a "metaficção historiográfica" não só produz como também problematiza o conceito de História, além de realizar uma volta ao passado de maneira crítica. A questão da representação em Beloved é, de forma consciente, tecida e problematizada nas marcas narrativas características da memória e do discurso oral. Nenhuma dessas modalidades, com suas repetições, variações, pontos obscuros ou vazios, assegura uma reconstrução completa, geral e fechada. Considerando a posição social das personagens centrais, escravos dos Estados Unidos vislumbrando a liberdade em meio às conseqüências da Guerra de Secessão, percebe-se que a narrativa desfaz a tradicional noção de centro, que registra e que é objeto do registro histórico. A História não é elaborada nesse romance por representantes da elite e nem os toma como centro. O evento histórico representado feita por um grupo social reprimido física e verbalmente. Volta-se o olhar para as experiências desse grupo, e, em vez de construir fatos sobre a escravidão, a narrativa revisa os fatos por meio da memória das personagens. A revisão da História feita pela ficção é possível ao aceitar-se o caráter incompleto que uma perspectiva unilateral fornece aos registros históricos oficiais.
Resumos Relacionados
- Beloved
- Beloved
- Beloved
- Beloved
- Gostado (aimé)
|
|