A tentação de Santo Antão
(Gustave Flaubert)
A TENTAÇÃO DO SANTO FLAUBERT
Nunca um santo tentou outro quanto Santo Antão tentou Gustave Flaubert. Muito cedo Flaubert descobriu Antão e desde então o diacho do santo nunca o abandonou. Antão buscava a santidade nas agruras do deserto, a ascese, a mais perfeita elevação espiritual. Flaubert não buscava outra coisa nas agruras do estilo, o que ele queria era o equivalente à santidade quando se despia de tudo que era exterior para buscar só a ascese da palavra. Como se fosse possível, em lugar da purificação da alma, a purificação da palavra, alguma inimaginável perfeição.
Os primeiros leitores, aliás, ouvintes da “Tentation de Saint Antoine” (“Tentações de Santo Antão”, Iluminuras, São Paulo, 2004) foram dois amigos que imediatamente desautorizaram o autor a mostrar a obra a quem quer que fosse. Aquilo era uma monstruosidade. O coitado do Flaubert foi obrigado a recolher-se à sua concha e produzir uma obra mais comum, “Madame Bovary”, e iniciar com ela um estilo literário simples, cabal, o Realismo, que afinal já se anunciava há tempos.
Passou a vida reelaborando a história do eremita louco – porque é loucura tal vocação à santidade – como se louco também fosse. Escreveu os “Três Contos”, com que levou à perfeição o tratamento da linguagem na história curta. Foi mais longe do que em “Madame Bovary” na sua análise da sociedade, escrevendo a “Educação Sentimental”, em que comete a proeza de traçar a história da sua formação psico-sociológica com a impassibilidade realista, sem nenhum afago no seu “eu”, que deveria ser conturbado como de qualquer artista – tanto que nós o dizemos conturbado, como se assim o víssemos nas entrelinhas, quando nem ali ele se mostra.
Ainda escreveria “Salammbo”, o preciosismo do estilo pelo estilo, se é que existe isso, se é que entre o precioso e o preciso da linguagem não se escondia algo mais forte, mais profundo de sua visão do mundo. Ainda escreveria principalmente “Bouvard e Pecouchet”, a análise das pretensões humanas e todas as besteiras em que se enleiam e consomem quantos buscam saciá-las. O nosso Stanistaw Ponte Preta tinha em quem se mirar quando criou o seu – nosso! – “Febeapá” (“Festival de Besteiras que Assola o País”). O seu “Bouvard e Pecouchet” era a prova de que tudo era inútil, de que se cortássemos – “inutilia truncat – as coisas inúteis da mentalidade humana, nada sobraria. Era a prova mesmo de que até a seu sonho louco de uma obra perfeita era inútil.
Nesse tempo todo estava reescrevendo a “Tentação” – que por um motivo de eufonia, certamente, virou “Tentações”. Se fosse só esse o defeito de tradução dessa edição brasileira. .. A “Tentação” que perseguiu Flaubert é de um outro tempo. É coisa que só a santidade explica. A sabedoria é um outro nome para a santidade – mas tudo é dizer pouco.
Paul Valéry disse certa vez que nunca escreveria um romance – o filósofo do rigor, o poeta do sensível que os sentidos não apreendem não conceberia que se pudesse escrever algo como “A condessa vai tomar chá às cinco horas”. A nobreza da sua linguagem, puramente do Espírito, não toleraria banalidades desse naipe. Nem um Proust seria perdoado. Pois foi esse Paul Valéry impiedoso que viu o alcance da “Tentation de Saint Antoine”, a sua superioridade diante de “Madame Bovary” ou da “Educação Sentimental”. Simplesmente porque a “Tentation” não é um romance? Porque “La Tentation de Saint Antoine” é muito mais do que um romance.
Sem desmerecer o gênero “romance”, Flaubert esteve sob o jugo de uma Tentação maior. Estava compondo um poema polifônico. Com algo de uma peça de teatro – mas as personagens são projeções da mente de Antão. Um poema de muitas vozes que são o desdobramento de uma só voz, a de Flaubert – ah, ia escrever Antão, escrevi Flaubert – porque é a voz de Flaubert que se imiscui na de Antão, que se imiscui na das suas fantasias. É o sonho, é a alucinação elevada ao mais alto grau. O inconsciente estava pedindo para ser descoberto, muito antes de Freud. A literatura moderna estava implorando para ter o seu Criador.
É preciso usar maiúscula para falar de Flaubert – Criador da literatura moderna. Com todas as liberdade formais – o romance não é mais um romance, ou tão-só um romance – e com todas as inquietações, as angústias, a loucura, a devassidão moral e existencial do homem moderno. Ave, Flaubert – é preciso dizer. Morituri te salutant! Os que vão morrer, os que já estamos mortos te saudamos, Santo ou Sábio Flaubert.
A literatura estava morta e não sabíamos! É preciso renascer das cinzas, como implausível Fênix? É preciso a consciência de que a literatura está morta, para que pudéssemos recriá-la. Flaubert deu-nos essa consciência – não o sabíamos, mas de uma forma ou de outra estávamos conscientes. Ave, Flaubert.
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