Niels Lyhne
(Jens Peter Jacobsen)
“Niels Lyhne” é a obra-prima de Jens Peter Jacobsen (1847-1885). O seu título original era “O Ateísmo”. Jacobsen, ateu, pretendia fazer uma crítica ao ateísmo positivista. Os pensadores do século XIX viam o ateísmo como uma espécie de religião. O homem é um ser superior, que não precisa de Deus. Precisa, no entanto, provar que não precisa de Deus. Jacobsen seria o ateu tradicional, um ateu interessante: não nega Deus, questiona ou teme a morte de Deus, ou teme o homem deserdado por Deus.
O artista angustia-se diante do universo. O absurdo da pequenez do homem diante da eternidade: “Posso concentrar-me quanto quiser, posso tentar não pensar em nada, sair apenas para passear sem nenhuma intenção, mas nada, nada, absolutamente nada, apenas a sensação de que o tempo está mergulhado até a cintura na eternidade e atrai as horas, que desfilam vertiginosamente, doze brancas e doze pretas, sem descanso, sem descanso.”
A dor de existir de Jacobsen projeta-se também em Niels: “Sem lar na terra, sem Deus no céu, sem nenhum objetivo no futuro!” Niels, que quer permanecer íntegro em sua fé no ateísmo. A fé em Deus representava apenas a fuga da realidade: “Sublinhou o quanto lucraria o gênero humano em força e independência quando, pondo a sua fé em si mesmos, os homens procurassem viver a sua vida em harmonia com aquilo que cada um, em seus melhores momentos, considera mais elevado, em vez de colocá-lo fora do próprio alcance e sob o domínio de uma divindade que tudo consola.”
É a fé que ensinou à sua mulher, Gerda, em oposição à fé cristã. Uma fé sem Deus, seca, estéril, onde só brota a perplexidade (aqui parece mais a fé de Jacobsen): “Tornava sua fé a mais bela e benéfica possível, mas também não escondia como podia ser opressivamente pesada e desconsolada a verdade do ateísmo nas horas de aflição, se comparada com aquele claro e feliz sonho de um pai celestial que guia e governa.” Para ser uma idéia mais próxima de Jacobsen, deveria ter dito “julga e pune”.
É certamente o próprio Niels, não apenas Jacobsen, que se prostra diante da morte do filho: “Levantou os punhos cerrados contra o céu, depois estendeu as mãos para o menino com a intenção alucinada de fugir... e então jogou-se de joelhos no chão e implorou ao Deus que está no Céu, que mantém o mundo atemorizado através de provações e disciplinas, que envia a necessidade e a doença, o sofrimento e a morte, que deseja que todos os joelhos se curvem tremulamente, do qual não se pode fugir, nem para o extremo dos mares, nem para o abismo mais profundo – a Ele, ao Deus que, quando lhe apraz, pode esmagar a criatura que mais amamos e reduzi-la a pó sob seus pés, ao mesmo pó de que foi feita...”
Com a perda do filho, vacilou, perdeu também a sua religião, rompeu-se o elo que o ligava ao nada em que acreditava: “Niels Lyhne perambula pelos quartos vazios, deprimido e acabrunhado. Alguma coisa se partiu dentro dele na noite em que o menino morreu; perdeu a confiança em si mesmo, e a sua crença no poder que o homem tem de viver a vida até o fim.”
Chora a derrota de Gerda. A sua doutrinação fora por terra. Ela abandonara toda a sua cultura religiosa ancestral por ele, pelo ideal que ele lhe ensinara. Mas não soubera resistir ao aguilhão da morte: “Como teria sido belo, dolorosamente belo se ela se tivesse agarrado a ele até o último momento, se os seus olhos não o tivessem abandonado até que a morte os turvasse, se até o último suspiro ela se tivesse contentado em viver a sua vida sobre o coração que tanto amara, ao invés de dar-lhe as costas à última hora, sequiosa de mais vida, ansiosa por viver.”
Finalmente, a prova decisiva: Niels está à morte. Resistirá ao embate fatal? Saberá morrer a sua morte? Não sucumbirá, como sucumbiu diante da morte da mulher e do filho? Não seremos todos fracos diante do cutelo da velha senhora, que vem para confirmar todas as certezas, dirimir todas as dúvidas? Diz-lhe o amigo Hjerrild, como antes lhe dissera a mulher: “Não se trata de mim, que estou vivo e com saúde, mas de você que está aí estendido e a torturar-se com suas teorias. Os homens que estão para morrer não têm teorias, e é completamente indiferente que as tenham. As teorias são apenas para ser vividas, só são úteis durante a vida. Que importa ao homem viver com esta ou aquela teoria?”
No quarto, olhando as estrelas, Hjerrild suspira: “Se eu fosse Deus, preferiria salvar aquele que não se converte à última hora.” Lembremos que Hjerrild era um ateu tradicional, como Jacobsen. Eu estou entendendo que isso significa ser ateu com Deus – e, se tal é impossível, já que “ateu” significa “sem Deus”, só podemos dizer que tal ateu nega a Deus, mas o tem no coração. Somente Niels Lyhne entra no Mistério com o coração vazio, proclamando em silêncio a verdade da sua fé e, como um verdadeiro mártir do ateísmo, “suportou a morte, a árdua morte.” Acredite quem quiser. Tenho por mim que nem o próprio autor estava acreditando. Aliás, não era uma crítica ao ateísmo positivista? Resta saber se a personagem convence. A mim, mas eu talvez seja exigente demais, a mim não convenceu.
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