Gershwin e a Fita de Möebius
(John Lester)
Uma boa leva de escritores que se aventura a rabiscar algumas linhas sobre jazz sempre acaba repetindo: o jazz surgiu do encontro da música africana com a música européia. Ou ainda: o jazz é a música européia interpretada pelo músico africano. Essa simplificação é indevida ou, na melhor das hipóteses, ingênua. É como olhar a fita de Möebius e afirmar que ela tem dois lados. Na verdade ela tem apenas um. Da mesma estranha safra é o jazz: ele não tem dois lados: tem apenas um. É uma forma musical absolutamente original, distinta de todas as fontes que lhe serviram de inspiração. E as fontes não foram apenas a rica polirritmia e os “desafinados” cantos africanos somados à simplória música popular inglesa ou à genial música clássica alemã. A cidade portuária onde nasceu o jazz, New Orleans, sofreu também imensa influência latina, quer seja em função dos colonizadores franceses e espanhóis que por lá deram as ordens, quer seja pelo enorme afluxo de imigrantes de diversas origens. Além disso, New Orleans diferenciava-se da maioria das cidades norte-americanas pela liberalidade católica – que permitia aos negros tocarem seus instrumentos improvisados, dançarem e entoarem seus cantos religiosos, inclusive o voodoo. Na verdade, os registros históricos demonstram que pouquíssima música africana ou européia chegou ao Novo Mundo.
Os primeiros imigrantes ingleses que por lá chegaram eram, em sua imensa maioria, quakers ou puritanos que renegavam a tradição clássica de um William Byrd ou de um Thomas Tallis, tradição esta ligada ao papismo por eles condenado. Mais interessados em sobreviver na nova terra, suas preocupações não consistiam em tocar violino ou compor sinfonias, mas sim em construir casas, plantar hortas e lutar contra índios. Os únicos resquícios de alguma música eram os singelos hinos religiosos, totalmente voltados para a manutenção da fervorosa e rígida fé puritana. Ninguém cantava ali para se divertir ou fazer arte pela arte. Cem anos depois, chegam os primeiros negros, arrancados violentamente de várias aldeias distintas e amontoados praticamente nus em porões de navios. Sem poderem trazer qualquer instrumento musical, toda a sua música estava depositada em suas mentes escravizadas. Cantos, dialetos e ritmos de diversas regiões da África foram obrigados a conviver, fornecendo aquilo que se costuma denominar de herança musical africana: uma colcha de retalhos de vagas lembranças musicais misturadas entre si pelo liquidificador da escravidão.
É desse quadro caótico e musicalmente frágil que, ao longo de quatrocentos anos, surgem as formas musicais populares e eruditas no Novo Mundo. Na arena clássica, somente no século XX o EUA se libertará do absoluto domínio da música clássica alemã – e essa libertação se deve muito mais às guerras com a Alemanha do que por uma vitalidade real da música erudita norte-americana. É também apenas no século XX que os músicos brancos iriam abandonar o lucrativo hábito de ridicularizar o homem negro através do minstrel e passariam a criar um teatro de revista com música popular que podemos denominar de genuinamente norte-americana. Tem coisa mais norte-americana que a Brodway? E, também apenas no século XX, os negros e mulatos (creoles) criam o jazz, forma de arte popular que melhor representa o espírito, o corpo e a medula musical desse novo país. Assim, considerando a música norte-americana como uma fita, ela será como a fita de Möebius: parece ter dois lados, mas possui apenas um. Toda a insegurança e pobreza da música clássica norte-americana é atenuada pela solidez e complexidade de sua música popular. Atuando como uma espécie de caldeirão musical, o jazz soube utilizar a estrutura da música popular – tão apreciada pelo público norte-americano em detrimento da ópera – para produzir uma forma de arte original, única, absolutamente distinta de qualquer outra tradição musical. Reunindo todos os elementos que encontrava pelo caminho, o músico de jazz terminou por realizar aquilo que ninguém poderia imaginar: colocou um fim na rígida divisão entre o popular e o erudito. Mostrou que a música, assim como a estranha fita, tem apenas um lado. Embora não seja classificada como jazz, a música de Gershwin faz parte desse processo centrífugo de criação musical, sabendo reconhecer a beleza de certas contribuições trazidas pelo jazz à música popular tradicional. Ele talvez tenha sido um desses grandes músicos norte-americanos que incomodaram bastante a tradição: sua música é complexa demais para ser considerada popular, mas é simples demais para ser considerada clássica. No Gramophone Jazzseen você ouve Rhapsody In Blue, tocada pelo próprio Gershwin e registrada num rolo de pianola em 1925. Agora decida você mesmo: quantos lados tem a fita ? (Infelizmente já retiramos a gravação de Gershwin - interessados podem entrar em contato comigo para eventual audição).
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